Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP
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crônica

Endividado, mas mochileiro

Senti uma pontinha de felicidade e inveja boa – se é que alguma inveja pode ser boa – ao ver as fotos da viagem de um grande amigo no fim do mês passado.

Primeiro, imagens deslumbrantes na multidão em um festival de música. Depois, paisagens fantásticas no litoral do Brasil, com a mochila nas costas. Foi subindo, subindo o mapa, contornando o nordeste brasileiro, até voltar das férias.

www.juicysantos.com.br - mochileiro, mas endividado

Também usava roupas novas, de marcas caras. Para ficar mais bonito na viagem, acredito. Nas legendas, a combinação de frases feitas com tiradas motivacionais valorizava viagens como uma descoberta interior. Conhecer lugares novos é mais importante que dinheiro, dizia uma delas.

Sua filosofia de vida deve ser o motivo para nunca ter se importado em pagar uma dívida comigo. Nem toca no assunto, já faz uns bons meses. O valor é menor que o necessário para fazer um mochilão pelo litoral brasileiro.

Era um momento difícil em sua vida, desemprego, dívidas crescendo, sabe como é. Pesou em minha consciência a amizade de décadas. Meu coração apertou mais que o bolso quando vi o grande amigo precisando de grana. Afinal, minha filosofia de vida coloca as amizades acima do dinheiro. E das viagens.

Saquei a quantia considerável, já que uma transferência seria “comida” pelo seu gigantesco cheque especial. Combinamos a quitação da dívida para quando a boa notícia de um novo emprego fosse estampada em nossos jornais.

Pena que ele esqueceu de avisar. Soube por um grupo de WhatsApp de sua recolocação profissional, poucas semanas depois do empréstimo. Passou um mês e entendi que era hora de ajustar a casa.

Depois de tanto tempo sem salário, a vida conturbada precisa de paciência para voltar aos eixos.

Mais alguns meses. Nada. Já havia esquecido a dívida fraternal quando me deparei com as fotos em paisagens bonitas com filtro de Instagram. Talvez ele tenha esquecido. Quem sabe até nem se importe, pensei maldosamente. Por saber que tenho um trabalho estável com salário polpudo e aumentos anuais, o espírito de viajante o tranquiliza. Convenhamos, o mochilão é para conhecer lugares novos e ter novas experiências, não pensar em cobradores.

É impossível lembrar dívidas enquanto pulamos em festivais de música, com gente amontoada e gritando as mesmas músicas. Ninguém é obrigado a fazer transferências bancárias em lindas praias do nordeste brasileiro.

Quando meu grande amigo voltar de viagem, vou chamá-lo no WhatsApp. Não vou perguntar de sua situação financeira ou de uma data prevista para pagamento. Vou rodear, vai que sua memória se refresca. Quero saber do tamanho na mochila e no quanto ela pesava entre uma parada e outra.

Não é para qualquer um seguir andando com muito peso nas costas, mas há quem consiga seguir em frente, sem se importar com a próxima parada ou com pendências deixadas pelo caminho.

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*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada (2ª edição). Escreve crônicas no Tirei da Gaveta