Texto porJuicy Santos
Santos

Clarice de verdade

Uma prima distante me adicionou no Facebook. Antes mais próximos, atualmente nos encontramos em enterros e outros eventos familiares pouco empolgantes. Temos a mesma idade e nos comportamentos de jeitos diferentes. Ela é do tipo que se entusiasma com pouco, sempre me achou um pessimista convicto e incurável. Não está errada.

Como de praxe com novos amigos na rede social azulada, passei algum tempo vendo suas postagens e fotos animadas. Viagens, aventuras e mensagens motivacionais eram os temas mais frequentes. Em uma desses clichês, uma frase era atribuída a Clarice Lispector. Daquelas sentenças típicas de autoajuda, seguidas pela legenda de
boa semana a todos.

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Eu tinha acabado de ler o fantástico A paixão segundo G.H. pela terceira vez. Quando o terminamos, não somos a mesma pessoa do início das páginas. Nele, a protagonista G.H. tem uma epifania ao arrumar o antigo quarto de sua ex-empregada e se deparar com uma barata. Não digo mais sobre o enredo: o leitor e a leitora têm a obrigação de ler Clarice. A real, no caso.

Possivelmente, ela faria uma cara blasé caso um descontrole de linhas do tempo a pusesse diante da postagem de minha prima distante. Eu a alertei, pois Clarice nunca disse aquilo. Pensava no filme de terror contemporâneo em que pessoas famosas são usadas como suporte a mensagens de conforto que nunca disseram.

Imaginei meu desespero se tivesse meu rosto colado a uma frase no estilo coaching, empreendedor de sucesso ou de incentivo à astrologia.

Acreditei prestar um serviço de utilidade pública com o alerta da falsa frase.

Depois de ser chamado de chato, ranzinza e babaca, perguntei se os comentadores já haviam lido Clarice Lispector ou, ao menos, conhecesse alguma de suas obras. Estranhamente, nenhum deles me rebateu tratando da densidade de seu contos, aspectos psicológicos dos romances ou características de suas crônicas.

O que importa é a mensagem de positividade, respondeu minha prima distante, com exclamações para marcar território e coraçõezinhos abaixo de sua frase de efeito enobrecedor. Sou inábil com programas de edição de imagens, fiquei impedido de colocar uma frase crítica ao governo ao lado de sua foto para engrandecer o debate. Paciência.

Recomendei a todos que também lessem A paixão segundo G.H. com muita atenção, especialmente depois do aparecimento da barata. Insisti também que lesse muito, o país precisa cada vez mais dessa atitude revolucionária, dados os preocupantes índices de analfabetismo funcional. Clarice dificilmente endossaria aquela frase, ressaltei.

Estranhei um silêncio nas notificações. Minha prima ficou mais distante ao me excluir e bloquear no Facebook em tempo recorde para os meus parâmetros. Espero não encontrá-la tão cedo em eventos familiares pouco empolgantes.

*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada. Escreve crônicas no Tirei da Gaveta