Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP

Clínica de recuperação para viciados em selfies

(Um círculo com pessoas sentadas em cadeiras. No centro, uma espécie de líder olha ao redor. Ninguém esboça reação. Um rapaz levanta)

Pessoal, muito boa noite e obrigado pelas boas vindas. Recepção calorosa, me senti acolhido. É minha primeira reunião, tô um pouco nervoso… Minha mão tremendo.

(Respira fundo) Vâmo lá, vou contar minha história.

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Bem, tudo começou quando fiz 18 e meus pais me deram um celular. Não era o primeiro, mas esse tinha câmera frontal. Tá, antes dele eu mexi na câmera digital do meu pai, mexi naquelas outras mais velhas. Tinha que colocar um rolo, eram no máximo 30 e poucas fotos, coisa assim. Das antigas, mesmo. Sempre com os coroas de olho, sabe?

(Os presentes balançam a cabeça, concordando)

Tudo começou com esse celular, o primeiro com câmera frontal. Quando me vi ali, na telinha, tocando os dedos, saindo a foto, fiquei hipnotizado. Tipo paixão mesmo. Via os melhores ângulos, fazia caretas, ria várias vezes antes de postar nas redes sociais.

Meus pais não se preocuparam no começo, só pediam pra eu dar um tempo. EU não conseguia. A coisa piorou, eles brigaram, ouvi minha mãe chorando algumas vezes, meu pai se irritava com facilidade, mas não tocavam no assunto.

Messenger, Instagram, Snapchat. Passei por tudo isso, mas o Facebook foi minha porta de entrada, nunca larguei. Quando percebi, não passava um dia sem uma foto na linha do tempo.

Foram muitas etapas diferentes, altos e baixos, recaídas: sem legenda, frase da Clarice Lispector, hashtags intermináveis, emojis, biquinhos. Depois que inventaram as stories então, tudo piorou. Deixava de me alimentar para tirar selfies. Até tentava me recuperar sozinho, mas quando dava por mim, vinha uma foto com bom dia e boa semana a todos.

Selfie de manhã, de tarde, à noite. Em casa, no trabalho, nas falsas viagens. Eu tava fora de controle e sabia que precisava me tratar. Chorei muito com meus pais. Eu pedia ajuda e eles brigavam comigo só de ouvir os tick, tick, tick. Várias fotos. Cheguei a tirar várias fotos em sequência, mudando a expressão facial. Rindo, chorando, bravo. Reações falsas, claro, mas rendiam uma sequência boa, de muitas curtidas. Só quando meu pai disse que não criou filho pra ser viciado em selfies que eu percebi. Tava fora do controle.

Quero recomeçar, ficar limpo. Não vai ser fácil, mas conto com o apoio de vocês. Não cheguei a drogas mais pesadas, como a falsa foto espontânea. Nunca viram? Posam feito modelo, fingindo não ver a câmera. Isso causa muito estrago e eu quero parar agora. Já. Só por hoje não vou tirar selfies. Só por hoje.

(Aplausos. Ele coloca a mão no bolso, o líder do encontro o encara. Ele tira a mão do bolso)

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*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada (2ª edição). Escreve crônicas no Tirei da Gaveta