Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP
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Senhoras e senhores

Na infância, não era raro eu ouvir advertências por uma suposta falta de educação ao não chamar os mais velhos de “senhora” ou “senhor”.

Meus pais nunca se incomodaram, até elogiavam essa postura. Dentro de casa, a liberdade se sobrepunha às hierarquias. Se não os chamasse por “você” ou “tu”, eles ficavam ofendidos.

Desrespeito era outra coisa, não um pronome de tratamento qualquer, diziam.

Foi na semana passada, lendo a apostila de redação oficial para um concurso público, que lembrei a maneira como chamamos os nascidos muito tempo antes de nós.

Segundo o manual de redação da presidência da república, há pronomes de tratamentos corretos para se referir a ministros de estado, governantes e outros funcionários públicos, em cargos eletivos ou não.

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Nos e-mails e correspondências oficiais, também há normas para o uso de vocativos. Para pontuar bem na prova, preciso esquecer um pouco a heterodoxia familiar, que não dita as normas comuns à sociedade.

Segundo a apostila, preciso chamar de excelentíssimo até quem não se comporta com excelência. Sou obrigado a tratar como “senhor” quem não merece nada além de um “você” ou outros pronomes inomináveis, ainda não inventados pelos linguistas.

Regras, por sinal, eram outra lição importante em casa. No lar em que “senhor” e “senhora” só podiam ser usados para se referir a divindades, as leis eram tratadas como subjetivas, de acordo com a vontade das chamadas excelências.

Nem toda regra é certa, dizia meu pai. Nem tudo que é certo é regra, repetia minha mãe. A ética se sobrepõe à legislação, comentavam no almoço de domingo.

Segui meus estudos, sonhando com a promessa dos cursinhos preparatórios. Para conseguir mais matrículas, eles não param de falar em concursos públicos e estabilidade, artigo raro nesses dias instáveis, única certeza em tempos incertos.

Meu celular tocou e lamentei a distração em meio ao estudo inadiável. Era a secretária do cardiologista, perguntando se eu confirmava para o dia seguinte minha consulta com o Doutor Alguma Coisa. Respondi que sim, não faltaria à consulta com Alguma Coisa. Ela confirmou, disse que o Doutor Alguma Coisa me aguardaria no horário marcado.

Quando ela desligou, as palavras “doutor”, “senhor” e “excelência” não saíam da minha cabeça.

Ouvia uma ênfase desnecessária.

Fechei a apostila, desisti do estudo e fui comprar pão, respirar, ver a rua.

Seria impossível me concentrar, com estabilidade, sem pensar nas formas de tratamento que nos aprisionam desde séculos distantes, desde os tempos senhores de uma história instável.