Texto porJuicy Santos
Santos

Um dia na vida do hipocondríaco

Paranoia 1: O hipocondríaco acorda antes do despertador tocar.

Fissurado em horários, tem pavor de atrasos e reclama se o ônibus chega um minuto depois do combinado.

Toma banho, pega a marmita da geladeira e a coloca na mochila.

Sente uma suave dor no estômago, talvez de fome. Seu desjejum é no serviço.

No caminho até lá, o incômodo aumenta. Pensa no jantar da noite anterior e se sente punido por uma refeição pesada àquela hora da noite, contrariando as recomendações de especialistas. Cogita mastigar uma das pastilhas verdes para o estômago, guardadas na bolsinha azul de primeiros-socorros, convertida rapidamente em depósito de remédios diversos.

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Acredita nos primeiros minutos do dia como prévia de 24 horas boas ou ruins. Começar com a barriga incomodada poderia ser um mau presságio. Quando ingere café e bolachas, o desconforto vai embora e a ingestão das pastilhas – ele preferiu mastigar duas, por precaução – se mostram desnecessárias.

Paranoia 2: No horário de almoço, a colega de escritório pergunta se o hipocondríaco tem algum remédio para dor de cabeça. Ela está mal, preocupações familiares lhe tiraram o sono nos últimos dias. Falaram algo sobre uma bolsinha de primeiros-socorros.

É verdade? Sim, é verdade, respondeu o hipocondríaco. E ele tinha, sim, um remédio para dores e cabeça. Um não, três. Aquele marrom, redondo. O outro que parece uma pílula em gel vermelho e outro, em gotas. O hipocondríaco prefere o marrom, dá uma sensação de paz. A colega de escritório fica impressionada: há remédios para dor de estômago, gases e inibidor de diarreia. Para emergência, nunca se sabe, né? Também há comprimidos contra dores musculares, gripe, alergias diversas. O calmante e a pomada para a pele precisariam ser comprados ainda naquela semana, depois do serviço. Tudo para emergência, sei os perigos da automedicação, respondeu o hipocondríaco à pergunta assustada da colega de escritório.

Paranoia 3: A poucos minutos de encerrar o expediente, o vizinho de baia comenta seus problemas de cansaço, em decorrência dos cuidados no tratamento contra um câncer de seu familiar. Empático, o hipocondríaco sugere o suco de jenipapo para melhorar a resistência imunológica. É fácil encontrar, aquelas barracas de ervas da feira vendem e até ensinam como fazer tal suco, basta bater no liquidificador e depois coar na peneira. No caso do câncer, não custa tomar uns bons sucos de graviola, ajudam muito contra tumores.

Graviola, aquela fruta, sabe?

O engravatado do outro lado do escritório ouve tudo e comenta sobre a obsessão por chás do hipocondríaco, que logo emenda: chá de casca de laranja contra dores de cabeça, chá de boldo contra desarranjos intestinais, chá de camomila para se acalmar e baixar um pouco a pressão, chá de canela e leite para gripes fortes, chá de alho para casos de sinusite. Seguiu falando de outros chás depois de bater o cartão na catraca da portaria central. Perguntado sobre onde aprendeu tudo aquilo, o hipocondríaco relata a leitura de um livro intitulado Medicina alternativa de A
a Z ou algo parecido.

Não foram incluídas mais paranoias por problemas de espaço.

*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada. Escreve crônicas no Tirei da Gaveta