Texto porJuicy Santos
Santos

Animais descontrolados

Deve fazer pouco mais de um ano que tomei coragem e decidi nunca mais dirigir um carro. De lá para cá, passei mais tempo indo de um lado para o outro em ônibus intermunicipais e VLT.

Vez ou outra, até uso esses aplicativos de transporte, mas só quando me sinto largado no meio do nada depois de tomar umas cervejas até a madrugada.

Ainda não estudei a obra de Freud a fundo, por isso o uso de automóveis como extensão de genitálias, gritos e buzinas como demonstração de poder em meio à frustração de salários baixos e empregos massacrantes nunca foram compreensíveis para mim. Na tentativa de não me render a esse processo de embrutecimento social, perdoo ao menos um motorista por dia e sigo adiante.

Outro dia, lia um livro, sentado no banco de um ponto de ônibus.

Entre as rápidas olhadas para a rua, com medo de perder meu circular, avistei um homem montado em um cavalo branco. Estava longe do visual de Sérgio Mallandro saindo do túnel para salvar Xuxa em “Lua de Cristal”.

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Era um maltrapilho. Eram maltrapilhos.

O homem parecia não ter controle do animal. Subiram a calçada. A senhora de óculos segurou a bolsa bege e o estudante colocou o celular no bolso.

Parei de ler.

O cavalo foi de um lado para o outro, o homem puxou as rédeas com força insuficiente e deu um grito. O animal se posicionou atrás dos bancos, todos se levantaram. Encarei os olhos do bicho, com cara de cansado, os pelos brancos e sujos, a aparência de fome. Meu ônibus chegou pouco depois de um animal domar o outro.

Seguiram seu caminho, segui o meu.

Passei a prestar atenção em muito mais que veículos de duas ou quatro rodas.

Poderia ser atropelado por animais descontrolados, de outras espécies também. Corria o risco diário de me acidentar se o destino me colocasse em outra encruzilhada dessas.

Ou, quem sabe, eu só tive o azar ocasional de me deparar com um cavalo explorado, gritando para denunciar sua condição de miséria. Aquilo não se repetiria e eu era um neurótico.

Até acreditaria na última hipótese se o destino, esse irônico, não me aprontasse uma das suas, poucos dias depois. Cansado, carregava minha mochila depois do expediente e voltava para casa.

Parei na faixa de pedestres a uma quadra de casa.

Esperava o semáforo migrar do vermelho para o verde, pensando nas tarefas pendentes, na marmita do dia seguinte, nos boletos atrasados e outras preocupações da vida adulta.

A carroça com dois moleques com seus 18 anos, se muito, passou o sinal vermelho e quase foi pega por um carro vermelho, em alta velocidade. Naquela mesma esquina, há uns anos, um senhor foi derrubado por uma van e conduzido ao hospital da cidade.

Por ali, também, outros furadores de sinal vermelho capotaram, criaram asas em motoqueiros, frearam bruscamente, xingaram mães, esposas e fizeram órfãos crianças com dentes de leite.

A carroça seguiu o caminho em meio a risos dos rapazes ante os xingamentos do senhor de meia idade, estressado no começo da noite. Há muitos animais descontrolados pelas ruas, calçadas. Até em escritórios, dizem.

Entrei em casa e pedi, sem sucesso, que minha cachorra e meu gato fizesse silêncio. Minha rua, asfaltada, une o centro à periferia. Estava lotada e as buzinas ecoavam. Tranquei o portão, tirei a mochila e respirei, sem o peso do trânsito.

*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada. Escreve crônicas no Tirei da Gaveta