Tarefas sem sentido
“Cumpra essa tarefa”, disse o chefe do setor.
“Mas ela não tem sentido”, respondeu o funcionário.
“E daí? Tô, tu é meu funcionário. Subordinado. Eu dou ordens, obedece e não contesta. É assim que funciona. Cumpra essa tarefa, não vou repetir”, esbravejou, deu as costas e saiu andando, batendo os sapatos no chão do corredor. Primeiro o calcanhar, depois o restante do pé, motivo de piadas e encenações nos intervalos na copa, onde a máquina de café era a desculpa para as fofocas em meio de expediente.
“Isso vai dar merda”, pensou o funcionário.
Quando começou a cumprir a tarefa sem sentido, o outro funcionário apareceu em sua mesa. Olhou para o computador e arregalou os olhos.
“Cara, que cê tá fazendo?”
“Cumprindo essa tarefa.”
“Mas ela não tem sentido.”
“Eu sei, eu sei.”
“Se sabe, por que tá fazendo?”
“Ordem da chefia!”
“O pé de pato que mandou?”
“Fala baixo, porra! Ele mesmo.”
“Cacete, isso vai dar merda. Das grandes”, alertou o outro funcionário, que saiu andando desconfiado, até encontrar a contadora.
Os dois eram os mais velhos do departamento. O outro funcionário deixou a contadora assustada
“Não acredito que o pé de pato fez isso”, gritou no corredor.
Mas era possível, sim. Sempre é possível.
O funcionário finalizou a tarefa sem sentido. Avisou o chefe e olhou para seus pés estranhos embaixo da mesa. Disfarçou. Viu um polegar indicando que ele não fez mais que sua obrigação de funcionário. Afinal, se os resultados não vinham do chefe, não havia méritos celebrados naquele setor. Todos reclamavam. Não era possível que a diretoria promovesse a tal cargo um adepto a tarefas sem sentido. Aliás, era possível, sim. Sempre é possível.
Dias depois, o telefone tocou. Era uma voz grossa da diretoria. A voz grossa da diretoria não gostava de falar baixo com subordinados.
“Escuta aqui, ô chefe do setor! Que merda teu funcionário fez? Chegou aqui uma tarefa sem sentido. Quer perder o emprego? Arruma isso ainda hoje se quiser continuar com a bunda esquentando essa poltrona reclinável, com vista para a cidade, nesse andar alto de prédio corporativo. Pra hoje, se vira. Quero um sentido nessa tarefa sem sentido!”
“Diretor, diretor…”, clamou o chefe do setor com voz branda.
À toa: o diretor desligou sem se despedir. Era seu costume gritar e gritar, para então encerrar o papo com subordinados.
“Secretária, ô secretária! Chama o funcionário aqui!”
“Claro, chefe! (…) Funcionário? O chefe tá te esperando na sala dele.”
“Vai dar merda, vai dar merda. Sabia que ia dar merda!”
Ele entrou na sala do chefe.
“Diga, chefe!”
“Porra, tu quer me foder? Acabei de tomar comida de rabo do diretor. Que merda de tarefa sem sentido tu fez?”
“Chefe, eu…”
“Quieto! Fez merda, ponto. Coloca sentido nessa tarefa sem sentido pra hoje, vai! Caralho, não dá pra confiar em funcionário, viu? Bora, bora! Pra hoje! Me avisa quando terminar!”
O funcionário fechou a porta, sem saber de que forma colocaria sentido naquela tarefa sem sentido.
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*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada (2ª edição). Escreve crônicas no Tirei da Gaveta e a coluna Cinefilia Crônica no Cinemaqui.