Texto porVictória Silva
Jornalista, Santos
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Dudu do Gonzaga foi livre e disse não à cisnormatividade nos anos 60

Os olhares que a cantora Maria Sil recebe sempre que sai de sua casa, em São Vicente, indicam: não é fácil viver na sigla LGBTQI na Baixada Santista. Especialmente em casos de pessoas trans, travestis e transvestigeneres, como ela e Dudu do Gonzaga, por exemplo.

Aliás, não é fácil para ninguém. Nem em Santos e nem em qualquer outro lugar.

Mas, para Dudu, a realidade foi ainda mais dura.  Afinal, ela viveu além da cisnormatividade na Santos dos anos 60, 70 e 80.

Se você não sabe quem foi Dudu do Gonzaga, essa é uma personagem de Santos que você precisa conhecer. Por isso, na semana em que comemora-se o dia do orgulho LGBTI (28 de junho), o Juicy Santos te conta um pouco mais sobre quem foi Dudu e porque ela não pode ser esquecida.

A liberdade de Dudu do Gonzaga

Luiz Eduardo D’Agrella Teixeira nasceu em Santos, no ano de 1947.

Não é possível dizer em que momento ele passou a ser conhecido como a Dudu do Gonzaga. Mas uma coisa é certa: a partir do momento em que ganhou o apelido, não havia quem não soubesse quem era a Dudu – fosse no Gonzaga ou em qualquer outro bairro de Santos. Ela era um dos personagens mais famosos da cidade na época.

juicysantos.com.br - dudu do gonzagaImagem concedida pela produção do documentário Dudu do Gonzaga

Atualmente, é vista com uma figura importante na batalha pela liberdade de ser quem se é.

“Ela é um gene social e identitário para nós LGBTI. Uma personalidade à frente do seu tempo, que nos anos 60/70 já vivia para além da cisnormatividade”, comenta Maria Sil.

De acordo com ela, a memória de Dudu do Gonzaga precisa ser lembrada sempre.

Para Renan Moraes, isso não é uma tarefa difícil. Segundo ele, é impossível se esquecer da imagem de Dudu do Gonzaga. Mais ninguém que ele conheceu era tão espontâneo e verdadeiro quanto Dudu. Aliás, ele diz que ninguém mais poderia levar o nome do bairro mais movimentado de Santos tão bem quanto a jovem de pele dourada e olhos claros.

“Ela assumia a sexualidade numa época em que quase ninguém fazia isso. Enfrentava o preconceito com a cabeça erguida e sambava na cara dos conservadores. Estava além do tempo dela e, às eu vezes eu penso, até do nosso”, comenta o senhor que confessa não ter sido um amigo, mas um admirador da coragem de Dudu.

Além de não esconder sua homossexualidade, o que por si só já causava um grande choque na sociedade, Dudu ainda viveu como queria. E queria usar saia, andar de salto alto, vestir rosa e ter cabelos grandes. E ela não ficou na vontade. Andava pelas ruas de Santos vestindo-se como desejava e deixando claro os rapazes de desejava, sempre que o bonde passava por seu caminho.

É a Dudu do Gonzaga

Dudu era uma travesti. Também era, nas palavras de Maria Sil, uma “bicha que quebrava gêneros”.

É por isso que ela estava sempre vestida com o que é considerado roupa de mulher. Nos dias de sol, Dudu criava seu próprio biquíni fio-dental. Pois de acordo com relatos, era comum encontrá-la na praia do Gonzaga deitada sob uma canga colorida com a tanga ao contrário. Usava a parte da frente para trás, pois assim a marquinha ficava mais bonita.

“A primeira vez que vi a Dudu fiquei encantado. Não sei se eu pensei se queria ser igual a ela ou se simplesmente me encantei com aquela figura. Ela era diferente de tudo que eu já tinha visto na minha vida. Alta, com um tamanco enorme, uma calça justíssima e blusa amarrada”, lembra Beto Volpe, escritor, ativista e fundador do grupo Hipupiara.

Era sempre a primeira vez

Características como essa faziam de Dudu uma personagem viva.

No caminho que ela percorria de sua casa até a praia, por exemplo, sua passagem era sempre um evento. Lojistas e clientes paravam os afazeres para ver a Dudu passar. Por mais que ela circulaase por ali todos os dias.

“Ela estava na época errada e na cidade errada. Para assumir a sua condição como assumiu, deveria viver em Londres”, comentou o irmão Manoel Dias em entrevista concedida em 2011 à revista Caça-História.

Ainda segundo relatos do irmão, Dudu acabou ganhando o carinho da maior parte das pessoas da época. Mas, em casos de preconceito (seja verbal ou físico), ela não tinha medo de se defender. Encarava qualquer briga se fosse necessário defender sua cidadania. Caso contrário, aproveitava os olhares e curtia como se fosse celebridade.

juicysantos.com.br - dudu do gonzagaImagem concedida pela produção do documentário Dudu do Gonzaga

Mas nem só de praia foi a vida de Dudu. Ela também atuava em salões de beleza de Santos e até performou em algumas boates da cidade – talvez o palco da Pink Panther tenha reconhecido seu talento. Infelizmente, não há como saber.

Três tiros

Na rotina de praia, salão e boates, Dudu ainda conseguiu se apaixonar.

Segundo relatos, ela viveu um romance extraconjugal com um policial militar. O relacionamento foi interrompido após a mudança do policial para São Sebastião. Porém, não aguentando a saudade, Dudu arrumou um emprego em uma boate local e também se mudou para a cidade do Litoral Norte.

Imagem concedida pela produção do documentário Dudu do Gonzaga

Nos 15 dias em que esteve na cidade, a santista não escondeu o envolvimento com o policial. Ela morreu no dia 6 de novembro de 1982, aos 35 anos, após ser atingida por três tiros (no pescoço e cabeça).

Jornais da época registram que moradores da cidade eram enfáticos: o crime foi cometido pelo policial com quem ela acreditava ter vivido uma história de amor. Quem conheceu a Dudu também não tem dúvidas de quem foi o responsável pelo crime. Após a morte, o corpo de Dudu voltou a Santos. Ela realizou o último desejo: o carro em que estava o caixão atravessou a Av. Ana Costa.

Uma história que virou filme e nome de cerveja

Assim como aconteceu com a Pink Panther, a história de Dudu do Gonzaga também se tornou documentário.

Dirigido por Nildo Ferreira, o trabalho foi contemplado pelo 6º Facult e busca manter a história da Dudu do Gonzaga viva, já que existem poucos registros online sobre essa personagem de Santos.

“Conheci a história a partir de memórias de pessoas que conheceram a Dudu. Assim que ouvi quis fazer o documentário”, conta o diretor do filme. “É chocante saber como ela morreu e que, ainda nos dias de hoje, muitas pessoas LGBTI morrem de maneiras tão violentas”.

O documentário conta com a participação de amigos da família, do irmão e também com um registro da mãe de Dudu (já falecida) falando sobre a filha. Atualmente o vídeo participa de festivais de cinema, mas em breve deve estar disponível online para manter a história da Dudu do Gonzaga viva.

A CAIS, cervejaria artesanal santista, também celebra a memória de Dudu. Os santistas Eugênio Martins e Alcemir Emmanuel lançaram, em 2018, uma edição especial chamada Dudu, uma witbier com pimenta dedo de moça.

Por aqui, queremos compartilhar mais e mais histórias de Dudu – e Dudus – que lutam e resistem para existir em toda a cidade de Santos e na região.