Diário Antirracista e a jornada de Samuel Emílio, um guerreiro sem armas
Três meses de Vozes Pretas. E, nesta décima-terceira edição, uma provocação, um desafio, um incentivo, um chamamento. Os olhos que lerem as linhas abaixo é que vão decidir qual a palavra mais adequada para a nossa proposta.
Quer dizer, para a jornada contra o racismo elaborada pelo ativista negro Samuel Emílio, engenheiro que produz nas ciências sociais.
Ele criou o Diário Antirracista para pessoas brancas. Trata-se de uma imersão em 30 vídeos, nos quais os participantes assumem três compromissos básicos: pensar, sentir e agir.
Samuel Emílio integra o comitê estratégico do Movimento Acredito, de renovação na política.
Ele é cofundador da plataforma Engaja Negritude, da Educafro. Liderança, educação, gestão pública são as suas áreas de interesse.
A inspiração
O assassinato de George Floyd, em maio de 2020, foi o começo de tudo, como recorda o ativista. Depois do sétimo dia de protestos, seus amigos começaram a perguntar como poderiam ter atitudes antirracistas no dia a dia. E também a pedir indicações de artigos, vídeos e livros sobre a temática racial. Rapidamente, percebeu que não teria como responder para todo mundo.
E assim, no calor dos protestos, #vidasnegrasimportam, surge a ideia do Diário Antirracista, “o que eu não esperava é que estes vídeos viralizassem”. Cerca de 12 mil pessoas – 75% de mulheres brancas – se cadastraram para receber os conteúdos dois dias depois do lançamento: teoria e prática, em pílulas, via redes sociais, refletindo o racismo no Brasil, propondo aprendizados para o fim da desigualdade racial vigente.
“Na internet, tem muitos conteúdos, mas não estão necessariamente organizados e muitas vezes exigem uma série de conhecimentos prévios de quem lê. E, hoje, a sociedade não aprende nada sobre racismo na escola. Então a gente precisava começar com algo muito didático”, comenta.
Por mais que individualmente nem sempre se discrimine de maneira intencional negros de brancos, as instituições têm essa prática na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na segurança pública, na justiça, no acesso a direitos, no trato com a infância negra.
Mas como um “esquenta” para o Diário Antirracista, vale lembrarmos um pouco dos nossos primeiros 90 dias de Vozes Pretas.
O Brasil é um país racista
Esta foi a nossa primeira frase – repetida seis vezes – ao escrevermos sobre privilégio branco. E seguimos mostrando como o racismo nos impede de respirar, de simplesmente viver a vida; se manifesta em palavras e de forma recreativa por meio de piadas. Abordamos o ódio que é semeado na sociedade quando todos não se reconhecem como iguais.
Chamamos atenção para a riqueza da diversidade, para pioneiros e campeões de vendas da nossa literatura. Destacamos nossa cultura, nossa força guerreira que vai para o enfrentamento com um sorriso aberto e franco no rosto. Reverenciamos nossa ancestralidade e denunciamos a invisibilidade estratégica da nossa cor.
Focamos no nascer, crescer e parir no feminino negro e ser encarcerado e morrer no masculino, diante de uma Justiça branca, caolha, cruel.
Teste rápido
1 – Depois deste flash back, qual o sentimento? Qual o efeito de Vozes Pretas na alma desde a primeira edição?
2 – Como foi a primeira leitura – pensamento, sentimento e/ou ação – ao ver o site que você sempre curtiu dando espaço para a questão racial? Como você reagiu ao saber da existência da coluna Vozes Pretas?
( ) Indignação
( ) É mimimi!
( ) Racismo não existe!
( ) Vou para o final da página criticar.
( ) Branco também sofre racismo.
( ) Apesar de eu não ser racista, quero saber mais e ensinar meus amigos.
( ) Quero ser parte da desconstrução do racismo no Brasil.
( ) Sei que tenho atitudes preconceituosas, até sem querer, em relação a negros.
( ) Reconheço meus privilégios.
( ) Demorou.
( ) #vidasnegrasimportam
( ) Nenhuma das anteriores
Independentemente das suas concordâncias e/ou discordâncias, insista no texto. Eu acredito que toda opinião merece ser respeitada. E espero que você também.
Na verdade, as duas questões do teste rápido se aproximam, em muito, dos termos propostos pelo ativista Samuel Emílio na abertura para a jornada pelo fim do racismo em nós e na nossa sociedade.
Siga o farol
O Diário Antirracista é uma imersão no próprio existir, com vistas ao autoconhecimento, à reeducação e à própria transformação.
Ser antirracista é uma questão de atitude. E toda mudança, toda ação consequente, parte obrigatoriamente do conhecimento, dentro e fora de nós – e isso vale, inclusive, para quem considera que racismo não existe, Vista a Minha Pele.
Ampliar o olhar, mudar pontos de vista, perspectivas, são fundamentais para absolutamente tudo. E no caso do racismo, como no machismo e na homofobia, todos, em alguma medida, vivenciamos o papel ora como vítimas, ora como algozes.
Basta pensarmos que o amor não tem gênero nem raça. Amor é sentimento e pode ir em qualquer direção – penso que este é um bom exemplo. Pessoas que amam pessoas, independentemente do sexo biológico com o qual nasceram, não existem só na família do vizinho.
Vozes Pretas não fez eco à questão da interseccionalidade, ainda, mas imagine que tudo se potencializa se a pessoa é pobre, mulher, negra e trans – são preconceitos se sobrepondo: machismo, racismo, homofobia, desigualdade social. Tudo isso pode, inclusive, impedir até a própria aceitação, como na história da Patrycia. E é assim que nos colocamos, como quem sofre e quem faz sofrer
Este olhar para o como estamos vivendo em sociedade nos auxilia a não perder de vista, nunca, que não existem vitoriosos quando a intolerância e o desrespeito são as marcas do nosso existir. Tudo nos afeta, tudo nos impacta.
Então, que todos sejamos parte da solução.
Mais que hashtags
O Diário Antirracista nos propõe pensar e aprender sobre o racismo nosso de cada dia, cuidar dos sentimentos que identificarmos em nós e agir na transformação da sociedade, indo além de postagens nas redes sociais.
Todo diário – aquele caderninho mesmo, que muitos de nós já tivemos como ‘companheiro’ – é um espaço seguro para investigação pessoal, para vivenciarmos, por exemplo, o desconforto de percebermos benefícios por termos nascidos com a pele mais clara. Ou mesmo para descobrirmos que podemos ser parte da desconstrução da estrutura desumana, que pauta nossas relações, mas a partir de um lugar de responsabilidade e não de culpa.
Quando do lançamento do Diário, em 8 de junho deste ano, Samuel Emílio foi no passo-a-passo, junto com os internautas participantes, construindo conteúdos:
“À medida que a gente ia fazendo o Diário – a partir da minha bagagem pessoal, das minhas referências teóricas -, observava quais as perguntas que mais apareciam para poder transformá-las em vídeos. Um deles, por exemplo, chama “Preto ou Negro?” e surgiu em função de muitas pessoas perguntarem ‘qual a forma correta de chamar a pessoa negra’. Aí, eu falo que a forma correta é chamar as pessoas negras pelo nome…”
Agora, o Diário Antirracista está pronto. Inteirinho no YouTube, do primeiro ao trigésimo dia. Quem quiser, pode vivenciar esta experiência no seu próprio tempo de reflexão, de compreensão de sentimentos e de tomada de atitude.
A ideia é que aconteça uma mudança no nível de consciência de cada um, cada uma – é um movimento individual, interno. Mas cabe, naturalmente, convidar alguém para a jornada, para a troca de ideias, de percepções…
Pela ordem
A orientação de Samuel é começar escrevendo porque decidiu fazer um diário antirracista e contar os próprios sentimentos ao presenciar ou vivenciar experiências racistas. Está tudo explicado no vídeo do primeiro dia.
No começo, são abordados conteúdos mais estruturais, como Ações Afirmativas Individuais, Lugar de Fala, Racismo Reverso e Racismo Individual, Institucional e Estrutural.
Mas o ativista não é a única voz da jornada, o que é um diferencial bem bacana e objetivo:
“Pessoas negras não são iguais, não pensam iguais. Aliás, como todo mundo”.
E compartilhar vivências negras variadas é imperativo.
Pode até parecer bobagem à primeira vista, mais muitos negros e negras já ouviram que estavam “negando a raça” por não saberem sambar, ou não gostarem de futebol, entre outros estereótipos alimentados. Tudo com o único propósito de segregar, discriminar, desqualificar.
Assim, as vozes – e rostos e corpos – da administradora Júlia Gomes, líder de Diversidade e Inclusão na Eureca!; da ativista Keit Lima, cofundadora do movimento Engaja Negritude; do psicoterapeuta Fabio Sousa, criador do coletivo Ressignificando Masculinidades; do jornalista Ismael dos Anjos, e da feminista Francielle Santos, entre outros e outras, também se fazem ver e ouvir.
E as vozes ecoam o Mulherismo, movimento de mulheres pretas, inspirado em África:
Indicamos aqui, ainda, os seguintes conteúdos:
- a influência do racismo na psiquê;
- o racismo recreativo, sobre piadas de cunho racial – existe até um livro, de mesmo nome a respeito, de autoria de Adilson José Moreira;
- os desafios das masculinidades negras, no plural mesmo – ser homem negro é diferente de ser homem branco sob vários pontos de vista;
- a desumanidade do racismo obstétrico;
- o racismo científico;
- o racismo ambiental.
Um pequeno spoiler – Samuel avisa no final: “Todo fim é um novo começo”.
O que ele quer dizer com isso?
Você decide.
O diploma
Samuel estima que cerca de 5% dos 12 mil inscritos conseguiram cumprir os 30 dias da jornada, que é mais ou menos a média de cursos on line em geral. “Mas até o décimo dia, mais ou menos, 20% das pessoas inscritas conseguiram acompanhar. Já os primeiros vídeos tiveram uma adesão muito alta, de mais de 50%”.
O que Samuel percebeu, muitas vezes, na interação com os participantes?
Que as pessoas estavam mais preocupadas em não passar vergonha, em não parecerem racistas, em não serem canceladas, do que efetivamente resolver o problema.
“Não dá para saber qual é a motivação, mas ainda é uma busca muito individual, com poucas pessoas se dispondo a entregar parte da vida delas para resolver esse problema estrutural. Querendo ou não, cada um de nós reproduz comportamentos racistas, inconscientemente. É da natureza da nossa estrutura social”.
Por isso, para ele, a principal preocupação, a grande questão a ser respondida e debatida pela sociedade hoje, não é quem é ou não é racista, mas quem se beneficia do racismo e quem é prejudicado por ele, olhar para as consequências e identificar maneiras de reduzi-las.
“Isso inclui atitudes antirracistas de pretos e brancos, que são diferentes. Uma pessoa negra, que consegue cuidar da saúde mental dos seus pares, está promovendo ações antirracistas” – exemplifica Samuel. “Financiar projetos liderados por pessoas negras, comprar de empresas lideradas por pessoas negras, votar e doar dinheiro para pessoas negras nas eleições são ações que pessoas brancas podem fazer com intensidade maior, exatamente por serem mais beneficiadas. Mas, no geral, todo mundo pode fazer quase tudo”.
E então, vai encarar?
Provocação, desafio, incentivo ou chamamento?