Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Como nascem as heroínas negras: conheça a jogadora Patrycia Ferreira

Contraditória relação – a mão que segura a caneta para pedir um autógrafo é a mesma que mata. Ou, como diz, em outras palavras, a atacante do Francos, time da primeira divisão do futebol português, saída diretamente de Santos para o continente europeu, a mão que aponta para xingar, para dizer que a gente não é ninguém, é a mesma que, depois, da arquibancada, vai aplaudir.

A boleira e compositora santista Patrycia Ferreira, preta, capoeira, “favela raiz”, mulher que ama mulher, é a voz desta edição do Vozes Pretas. Na verdade, nossas vozes vão misturar-se do mesmo modo que as histórias de mulheres pretas sempre se misturam, se confundem, recheadas de felicidade guerreira, sem parada para descanso.

Não importa se ela é da favela e eu não, se ela tem oito irmãos e eu apenas uma irmã mais velha, se ela tem 23 anos e eu, 63… Nosso encontro aconteceu na dor do abandono paterno, na mãe amorosamente rígida e valente que nos fez forte, no orgulho pelas próprias conquistas, nas alegrias e tristezas da infância, na escrita, na conexão com um Deus em nós, no interesse pela psicologia, na maternidade – um desejo para ela, uma realidade para mim. 

www.juicysantos.com.br - Patrycia FerreiraFotos: arquivo pessoal/Patrycia Ferreira

Patrycia Ferreira Alves – “o y é “coisa da minha mãe” – nasceu às 5h45 do dia 12 de março de 1997, do ventre de  Nancy Ferreira. O parto, na Santa Casa de Santos, foi normal.  Mas a bebê, nunca seria! rsrs

A sexta filha de Nancy e Edvaldo foi levada para o Morro São Bento, onde conheceu seus outros irmãos. Sem imaginar que, depois dela, nasceriam mais três – no total, 4 meninas e 5 meninos!

Comilona e cordata na infância, ganhou anos de vida e rebeldia, deixando seus sentimentos transbordarem em lágrimas. Assim ela cresceu, lavando a alma para bem enxergar o caminho da luta.

A capoeira – sua segunda paixão – ajudou bastante: “Me deu forças para viver, me reconfortou”. Foram sete anos aprendendo a existir, a dizer a que veio, a trabalhar seu espírito de liderança. Mas lado a lado, com o berimbau e os atabaques, estava a bola – primeiro amor – que a levou para Portugal faz oito meses.

Terra de escravocratas

Conta o livro Escravidão, de Laurentino Gomes, que o início da devastação do continente africano tem como data de registro o dia 8 de agosto de 1444, quando saíram dos porões de um navio 235 homens, mulheres e crianças negros para serem leiloados.

Patrycia não pensou nisso quando disse “sim” ao Grupo Desportivo e Cultural A dos Francos, concretizando, finalmente, o sonho de ser jogadora profissional, oportunidade que nunca surgiu no Brasil.

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

Sua única dúvida – antes de assinar o contrato de dois anos, com  salário livre de despesas – foi deixar a família, a mãe, os irmãos… Mas a chance era única e o jeito foi assumir a posição de goleira e agarrá-la com as duas mãos.

“Eu não acredito que Deus dá coisas materiais pra gente. Ele dá oportunidades”.

Quando chegou em Portugal, no seu time, ela e sua amiga Andrezza eram as únicas negras.  Hoje, são seis, de diversos países.

No começo, em Leiria, achou tudo estranho, sentiu a diferença:

“Fiquei até assustada. Em Portugal, só tem pessoa branca. E elas são educadas. Tratam você com respeito, não me olham como no Brasil. Aqui não tem segurança me seguindo no mercado”, comenta, dando suas primeiras impressões do viver no continente europeu, no 1º mundo.

E é curioso porque Patrycia diz o mesmo ao se referir à favela, onde sempre morou, até tornar-se jogadora internacional:

Na favela, eu não sou roubada. Eu não apanho. Eu não sofro preconceito. Me chamam pelo meu nome.”

A menina e a bola no pé

Patrycia só não foi concebida nos gramados… Todo mundo da família  sempre jogou futebol: mãe, pai, irmãos, irmãs. E, originalmente, formavam um time completo de futebol de campo: pai, mãe, mais 9 filhos!

Mas no noves-fora, só ela seguiu carreira. Seu irmão Rafael, inspiração em tudo na vida, “faz arte com a bola”, mas, hoje, é barbeiro.

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

Da infância, ela lembra – com saudade boa  – de jogar bola com os irmãos dentro de casa e das brincadeiras em cima da cama – sua mãe não deixava ninguém brincar na rua.

O momento ruim, a pior memória, quando criança, também tem a ver com a bola. Aconteceu quando ia participar de seu primeiro campeonato de futsal. Ela tinha entre oito e nove anos e não pode ir: não tinha chuteiras nem quem a levasse ao jogo. Este foi um dia que ela lembra ter chorado muito.

“Se meu pai estivesse com a gente, tudo poderia ter sido diferente. Senti muita raiva com a sua ausência, senti falta de ajuda, de carinho. Mas, hoje, penso que foi melhor ele ter-se afastado, porque poderia ter comprometido a educação que a minha mãe deu pra gente.”

Atleta da vida

Patrycia cresceu sabendo o que é não ter.

A primeira “aula” foi aos 2 anos de idade, quando aprendeu o que é um lar sem a presença paterna – exercício de perdão e gratidão pela vida.

A decisão da mãe de sair de casa com os filhos, fugindo das agressões do companheiro, a levou a “morar de favor na casa da avó”, em um  exercício de humildade.

Sua mãe trabalhava como cuidadora de idosos e, com tantos filhos, não ganhava o suficiente para presenteá-los ao mesmo tempo. A cada mês, só um filho recebia um mimo, era uma espécie de rodízio – exercício de paciência e esperança.

Aos seis, sete anos, quando já entendia o que era o Natal, a vida ensinou que nem sempre é possível ter uma ceia como as da TV, uma árvore, mas que mesmo assim é possível ser feliz.

“Minha mãe não tinha dinheiro para a árvore de Natal. Eu era a caçula na época. Aí, ela pegou a gente pela mão e a gente foi catar garrafa pet para montar uma árvore. Ela ficou enorme! Os enfeites eram os bichos de pelúcia que a gente tinha. E minha mãe colocou velinhas pela casa inteira. Foi perfeito, porque acabou a luz. Foi a primeira árvore de Natal que eu vi.”

Em outro ano, quando a ceia foi arroz e feijão, Patrycia lembra sua mãe dizendo: “Esse é o último Natal que a gente passa assim”. E, depois da promessa, Nancy deu um jeito, como sempre, de deixar tudo bem.

“Ela fazia o pouco ser muito”.

O problema, desta noite específica, é que Patrycia viu a mãe – que sempre se fez forte para os filhos – chorando…

“E eu chorei por mim e mais por ver minha mãe chorando e não entender o real motivo”.

Durante muito tempo, o sonho de ser atleta profissional foi deixado de lado. Ela precisava ajudar em casa. Depois, deu um jeito de conciliar treinos, trabalho e escola – é técnica em Logística e Comércio Exterior – exercício de perseverança, força, coragem, determinação.

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

O despertar

O movimento estudantil, aliás, deu a ela um novo olhar para a vida. Até liderar o Movimento das Ocupações das Escolas, em 2015, em Santos, para protestar contra a reestruturação da rede pública estadual de ensino, Patrycia era desconectada das questões sociais e políticas:

“O movimento estudantil me mostrou que eu precisava lutar por uma causa maior. Não me enxergava como alguém engajada socialmente. Sempre morei em morro, em comunidade, mas não entendia a luta que eu tinha, que era preciso lutar para ser bem-sucedida sendo uma mulher negra vinda da periferia. Dependia de mim conquistarmos o melhor”. 

Racismo

“As pessoas usam palavras que ofendem. Mas por estarem com um sorriso no rosto, elas acham que não ofende. Chamam você de ‘nega do cabelo duro’, ‘da favela’, ‘macaco’, ‘neguinho’… Não é uma brincadeira saudável. E a gente sorri de volta, sem perceber o que estão fazendo, apesar de a gente não gostar. É racismo por debaixo do pano! E os adolescentes fazem muito isso.”

E a chamada “gente grande” não fica atrás…

Patrycia lembra da que classifica como “a maior vergonha” que viveu: contratada como coordenadora de um buffet infantil, foi desqualificada por um cliente, na frente dos convidados dele, sem que tivesse qualquer motivo que justificasse tal atitude.

“Mesmo sabendo que eu era a coordenadora, ele exigiu que eu – e não um garçom – servisse uma fatia de bolo para ele. ‘Eu quero que você me traga o bolo’ – disse. Eu levei. Ele reclamou do tamanho da fatia, jogou o prato na mesa e exigiu outro pedaço. Eu tinha 18 anos, mas já sabia que o problema não era o bolo… Ele queria me diminuir. Chorei muito na cozinha. Mas voltei para o salão com um novo pedaço. Aí, ele fez um show na festa, começou a falar alto que o atendimento era péssimo, que eu era uma má gerente, que eu não servia para trabalhar. Foi revoltante, constrangedor.”

Questão de gênero

Na profissão que escolheu também não foi diferente.

“Já vivi muito preconceito com o futebol, por ser negra e mulher. Acho até que mais por ser mulher… Sempre treinei com times masculinos e ouvia coisas do tipo ‘no meu time eu não quero mulher’ ou ‘aqui menina joga’. Isso sem contar os olhares críticos.”

Aos 13 anos, Patrycia era a única jogadora do Campeonato Brasil, pelo Meninos da Vila. E tinha um álbum de figurinhas, onde o rosto de todos que estavam participando ia aparecer. Só que não queriam fotografá-la por ela ser menina.

“Aí, os meninos que jogavam comigo comunicaram os outros times. Todos eles se reuniram, fizeram um protesto e disseram que se o meu rosto não estivesse no álbum o campeonato ia parar. Eu achei muito legal da parte deles. Mas fiquei muito triste também.”

(Para quem não sabe – como eu não sabia – , no Brasil, até os 14 anos, meninos e meninas podem jogar em times mistos. Só depois dos 15 anos que as equipes são divididas em feminina e masculina.)

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

Menina é sempre a última a ser escolhida. E logo percebi que eu tinha de me igualar para poder jogar. Isso me trouxe um trauma. Mas esse preconceito todo também me fez ser quem eu sou. Eu chorava muito e dizia, para a minha mãe, seu eu tivesse nascido menino seria mais fácil!”

Eu insisto e questiono: Se você fosse um menino branco…?

“Se eu fosse um menino branco!? Nossa!!!” sorri, só de pensar nas facilidades. “Mas eu não trocaria. Tenho orgulho da minha história”.

Boa de bola

O fato é que Patrycia nunca caiu de paraquedas no meio dos meninos. Se ela jogasse abaixo da média não seria escolhida, mas sempre se igualava aos meninos e, por isso, integrava os times masculinos.

“Eu sou uma atleta de ponta. Tenho muita raça, determinação. Sou boa na marcação, na velocidade. Tenho 1m70, 70 kilos. Faço gol de cabeça e também limpo a jogada para que outros finalizem com os pés”…

Escrevo eu: a generosidade é o seu ponto forte. Aliada, ao seu sorriso escancarado, franco e um resquício da timidez da adolescência.

Auto-encontro

Patrycia caprichou: mulher, negra, lésbica, boleira!!! Não é um pouco demais?

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

O que a gente faz com toda a dor de viver em uma sociedade tão desigual, cruel e intolerante?, perguntei.

“Não esquece nada.” – respondeu, sem pestanejar. “Tudo que vivi me fez grande. Eu não era da paz. Fui uma adolescente revoltada.” 

“Sou lésbica. Guardar isso fez raiva em mim. Sentia vergonha. Comecei a beber com 16, 17 anos, escondido, para esquecer quem eu era. Não sabia como lidar. Eu batia nas pessoas. Gritava com todo mundo. Respondia. Eu era homofóbica! E sofri muito por não me aceitar, por me esconder de mim. Hoje me sinto inteira.”

 Como foi a reação da sua família?

“Minha mãe me entendeu. Meu pai – até eu jogar no Mundial do México  –  não aceitava nada em mim. Mas, depois, disse que se orgulha de mim!”

Primeiro carimbo

O Mundial do México, em 2018, foi a primeira oportunidade de Patrycia sair do país. Ela foi uma das oito escolhidas em uma peneira com 500 atletas para participar do Showbol, como integrante da Seleção Brasileira.  

Conhecido como Copa de Futebol Social, o torneio é direcionado a pessoas de baixa renda. Funciona como uma vitrine para jovens entre 16 e 20 anos de diversos países, na categoria feminina e masculina.

Na época em que foi escolhida, ela declarou:

“Eu jogo desde os 8 anos, e essa foi a única oportunidade dentro do futebol que me fez chorar, porque na condição que eu vivo hoje eu não teria como sair do país para jogar. E esse é, de longe, meu maior sonho”. 

Leia, aqui, mais alguns trechos da nossa entrevista

Você é importante?

– “Eu sou uma influência boa para os meus sobrinhos, um exemplo. Longe de ser perfeita, penso que nós somos importantes para o mundo.”

Você disse que saiu da favela, mas a favela não vai sair de você. Qual o significado desta sua fala?

– “A favela está dentro de mim porque é a minha raiz. É onde eu cresci. É o lugar em que eu mais aprendi, mais me tornei gente, onde eu mais recebi respeito das pessoas. As pessoas que estão de fora não vêem isso. Imaginam que na favela só tem traficante, quem mata, quem estupra… E não é isso. Se hoje eu sou uma boa pessoa, é importante que todo mundo saiba que eu nasci na favela.” 

O que falta na favela?

– “As pessoas de cima olharem para as pessoas da favela, sem preconceito. Os professores que dão aula na favela são preconceituosos com a favela e, sem educação adequada, tudo fica mais difícil.” 

O que é muito ruim na favela?

– “O abandono é uma realidade. Isso leva muitas crianças a irem para as drogas para ajudar a família. O ruim também é olhar que a viatura só entra na favela para fazer o mal. Outra coisa é que ninguém quer dar emprego para quem mora na favela.” 

Existe diferença entre ser a “branquinha da favela” e a “neguinha da favela”?

– “Você é branca, você não é da favela. Ninguém acredita. Se a pessoa diz que é da favela, falam que ela está brincando. Se é neguinha, ninguém duvida. Neguinho, neguinha, é naturalmente da favela.” 

O que dizer para as pessoas brancas?

– “Que ensinem respeito aos seus filhos, que o que importa nas pessoas é o coração.” 

Qual o seu maior sonho?

– “Ver o mundo inteiro aplaudir meu futebol. Conquistar uma copa do mundo. Dar uma casa para minha mãe, estabilidade para a minha família.” 

Seis meses em Portugal, pandemia… Você sente solidão?

A solidão pega. Falo com a minha mãe todo dia. Choro. Sinto falta do barulho, da bagunça de casa…” 

E o futuro, o que vai ser?

– “Quero ser mãe quando encerrar minha carreira. Quando parar de jogar futebol, também quero cursar Psicologia. Tenho muitos sonhos. A vida foi feita para sonhar. 

E realizar.

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Letra e música

No começo da coluna, escrevi que Patrycia e eu nos encontramos na escrita – nós duas adoramos escrever. E, para ela, o despertar aconteceu neste período de quarentena longe da família.

Seus textos viram letras de funk e a inspiração é sua própria história.

Em 30 minutos, a música está pronta e é muito gratificante. Posto no Facebook e as pessoas já falam que passam pelas mesmas coisas… Falo de motivação, família e futebol. Já recebi até convite para produzir.”    

 “O segredo da vida é o quanto se aguenta apanhar, não é o quanto se aguenta bater!”, ensina em uma das letras, que falam, ainda, da importância do apoio da família e de talentos desperdiçados por conta de preconceito.

www.juicysantos.com.br - Patrycia Ferreira

Do nada, o tudo

Ser jogadora profissional era um sonho de criança. Jogar em Portugal, era outro sonho infantil. E, de repente, os dois sonhos se unem em uma só realidade, nascida inesperadamente.

Sua amiga de infância e colega de profissão, Andreza, foi chamada para jogar em Portugal. O time precisava de uma atacante. Ela indicou Patrycia. Assim, as duas trabalham e moram juntas, agora.

Quanto ao Brasil? Só decepção. Ela deixou de acreditar no futebol do próprio país, tamanho o abandono e esquecimento em que as atletas são deixadas.

“O Brasil me fez acreditar que eu não teria oportunidade de ser jogadora, o país me decepcionou como atleta e como pessoa”, desabafa.

A desumanidade das peneiras, na opinião de Patrycia, é absurda. Participam  mil atletas, para serem escolhidas duas.

“As meninas de Santos não têm uma oportunidade. Tem muita jogadora boa que não tem chance, não têm valor no nosso país”.

Ela chegou em Portugal em janeiro. Com apenas dois jogos oficiais, o campeonato foi paralisado. E a previsão é que em setembro, tudo volte ao normal. Os treinos já foram retomados

2020 é um ano que jamais será esquecido. Nem todos terão coisas boas para lembrar, mas a atacante, hoje, no auge de seus 23 anos, sim.

Conversa boa demais! Obrigada. 10 no campo, 10 na vida, sem romances nem devaneios, com luz e sombra, opressão e liberdade.