Texto porJuicy Santos
Santos

Carta afetiva aos sofridos crossfiteiros bolsonaristas

Sou um pacifista incurável. De uns tempos para cá, me policio para sequer levantar a voz, embora eu atinja altos decibéis ao tratar de assuntos do cotidiano. Deve ser a genética, não sei. Ainda assim, evito gritarias e nunca saí na porrada com ninguém, o que me deixa envaidecido. Tudo bem, isso é o mínimo da civilidade, mas nunca se
sabe, não é mesmo?

Até pelo meu estilo pacato, fiquei surpreso ao perceber a enxurrada de comentários na crônica O crossfiteiro bolsonarista entra no bar…, publicada aqui no Juicy Santos no último 31 de julho, em sua página no Facebook. Uns mais raivosos, outros educados, boa parte mal-humorados.

Fiquei especialmente tocado com a alegação de preconceito contra o personagem central da crônica. Amigos internautas viram ali um ataque gratuito aos crossfiteiros, que tanto lutam pelo reconhecimento e fim da discriminação contra a nobre atividade. Outros repetiram as palavras Lula, PT e Lava-Jato e me fizeram
lembrar aqueles bonecos da infância, que repetem as mesmas palavras ao ter o peito apertado por crianças choronas.

www.juicysantos.com.br - crossfiteiro bolsonarista

Deve ser mesmo complicada a vida das pessoas que carregam pneus em busca de um corpo sarado, ou mais qualidade de vida, seja lá o que isso queira dizer. Imagino nas ruas, por exemplos, pessoas atacando umas às outras com lâmpadas fluorescentes, agredindo-as fisicamente e até mesmo cometendo homicídios. Pais e mães retrógrados
expulsando filhos crossfiteiros de casa e até políticos eleitos anunciando preferir um filho bandido a um filho crossfiteiro. Muito choro, sofrimento e traumas psicológicos.

O pérfido mercado de trabalho tem lá sua culpa nesse cenário opressivo. A lamentável tendência de pagar salários menores a crossfiteiros que ocupem cargos idênticos aos de sedentários precisa acabar. Assédios corriqueiros aos musculosos e marombados é o retrato de nosso atraso. Aliás, os olhares tortos aos corpos marombados, colocando os riscos como sinal de preguiça e doença também é digno de nota.

Não posso deixar de mencionar o bullying contra a recusa às bebidas alcoólicas, maliciosamente exposta na crônica passada. Como bem mencionado em um dos raivosos mais intelectualizados, houve ainda a generalização ao cheiro de suor e gases de frango e batata doce no ambiente de superação, ainda que uma ligeira confusão com o uso de vírgulas tenha levado nobres leitores a me imaginarem esculachando mulheres que praticam tal atividade. Ninguém é obrigado a entender de gramática, evidentemente.

E, ademais, ambientes de exercícios físicos malcheirosos são coisa do passado, há desodorantes e produtos de limpeza moderníssimos que evitam tais contratempos.

Por falar em cheiro, houve quem se dedicasse a me apontar como membro da esquerda limpinha. Bem, não sou adepto ao gasto desnecessário com perfumes caros e descobri um precioso desodorante baratinho, posso indicar depois aos interessados – não cito marca sem o devido patrocínio a este site que abriga minha crônica.

Houve também quem questionasse uma suposta alfinetada ao presidente da república, mas tive dúvidas se era ele o defendido ou algum personagem da Marvel.

Como não sou um grande fã de filmes de super-heróis, deixo essa para os especialistas, até para não soar mais arrogante, conforme apontado por nobres leitores assíduos de crônicas.

Tentei entender a que se referia um comentário acusando um silêncio ante “homossexuais degenerados”. Não sei o que isso significa. Tampouco fui capaz de decifrar o motivo de tanta irritação com respostas de outros leitores simpáticos referindo-se uns aos outros como animais típicos do setor agropecuário. Preocupações ambientais, talvez.

Quanto a outros comentários pertinentes na crônica supracitada, listei abaixo os mais relevantes para fazer um mea-culpa, suprimindo erros de português repetitivos para melhorar a compreensão. Ainda que tivesse minhas sinceras dúvidas da existência de amor à língua pátria por parte do típico crossfiteiro bolsonarista ofendido com este
escriba, compreendo a rebeldia contra este idioma tirano.

  • “Texto lamentável”: por vezes, a vida é lamentável e perder preciosos segundos nessas linhas pode gerar desconforto, mesmo;
  • “Um ataque aos crossfiteiros”: não foi essa a intenção, mas prefiro não ficar na defensiva;
  • “O autor tem político corrupto de estimação”: meus únicos animais de estimação são Gabriela, minha cadela cega, e Scar, o gato que corre por toda a casa. Houve algum engano aqui;
  • “Escritor de merda”: na verdade, juntei palavras em crônicas e em dois livros publicados, mas posso pensar em criar textos escatológicos se for o gosto do freguês;
  • “Preconceituoso e arrogante”: sugiro a criação de movimentos que unam os crossfiteiros bolsonaristas, quem sabe marchas reivindicando direitos em um futuro próximo;
  • “Crônica desnecessária e nada objetiva”: a leitura é necessária, minhas crônicas não. Mas a literatura nunca é objetiva;
  • “Matéria ridícula”: era uma crônica, não uma matéria, sugiro estudar conceitos básicos de jornalismo e literatura para evitar equívocos;
  • “Sinal de carência e desespero”: faço terapia e recomendo demais, mas se quiser conversar comigo para me ajudar, aceito;
  • “(…) deveria morder fronha gritando debaixo do cobertor”: nunca tive essa experiência, mas vou guardar a sugestão carinhosa;
  • “O autor não engoliu a derrota”: o São Paulo não jogou na última rodada do Campeonato Brasileiro, mas a seca nos clássicos me incomoda, de fato;
  • “Generalizou os crossfiteiros”: você poderia começar com um simpático “mas nem todo crossfiteiro…”, parafraseando esta classe tão representativa a qual pertenço, o homem branco heterossexual;
  • “Precisa fazer atividade física, mas isso não vai te liberar de ser um boçal”, realmente, a boçalidade é uma prisão. Costumo correr, mas estou sem tênis adequado, se tiver um para me emprestar, ficarei muito grato;
  • “Não tem conhecimento do esporte”: se tiver algum livro ou manual explicando melhor, aceito;
  • “Lixo fascista”: defina fascismo, por favor, não entendi a classificação. E espero ser reciclável;
  • “A mamata acabou”: acordei às 5 da manhã para ir ao trabalho, nem aproveitei o começo da mamata, sou um mal-informado;
  • “Desrespeitoso”: mais humor, por favor;
  • “Corrupto”: de corrupto e louco, todo mundo tem um pouco;
  • “Esquerdista maconheiro”: sou a favor da descriminalização da maconha e de um maior debate quanto às outras drogas – o álcool é uma droga, não sei se sabe disso. Nunca plantei nem um pé de alface, deve ter se confundido.

Espero ter esclarecido os desavisados e selado a paz com tão nobre categoria, vítima de tanta discriminação. Afinal, a filial de uma gigantesca academia está prestes a abrir na esquina de casa e quero evitar problemas ao estacionar meu carro.

*Leandro Marçal é jornalista e autor dos livros De Letra: O futebol é só um detalhe e No caminho do nada (2ª edição). Escreve crônicas no Tirei da Gaveta

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