Texto porLudmilla Rossi
Santos
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Le Havre: arquitetura e arte no norte da França

Era uma manhã de sol de agosto. Com malas arrumadas desci com a minha mãe para a porta do hotel onde estávamos. Fizemos check-out e eu só queria aproveitar um pouco mais daquela cidadezinha francesa que antes nunca esteve nos meus planos. Estávamos fazendo alguns selfies antes de sair quando somos gentilmente interrompidas por um francês, que mal esboçava o inglês. Ele se ofereceu gentilmente para tirar fotos nossas, trocando-as pelos nossos selfies.

Aceitei e agradeci. Ao invés de responder You’re welcome, o francês respondeu:

– You’re very welcome in Le Havre, France.

Se fosse uma cena de uma propaganda, seria um tanto clichê. Mas era vida real. Aquilo tinha realmente acontecido, coroando mais uma deliciosa descoberta feita em Le Havre: a simpatia dos franceses com os turistas é mais aparente do que parece. A cidade ainda não está tão presente nas escolhas turísticas dos brasileiros e antes de estar na minha rota, eu nunca tinha ouvido falar de Le Havre, apesar de toda sua importância histórica na arte, na arquitetura e na guerra.

A arquitetura viva de Le Havre

É chocante visitar Le Havre sabendo que um dos bombardeios que a cidade sofreu dizimou mais de 5 mil vidas, feriu 80 mil pessoas e destruiu mais de 12 mil prédios. A cidade traz um contraste absurdo, com construções de 1700 e 1800 que pulam direto para prédios e apartamentos construídos em massa entre 1945 a 1964, num plano de reconstrução até então inédito no mundo.

Os amantes da história da arquitetura, arquitetos ou estudantes do tema deveriam incluir Le Havre em seus rolês pela França. A cidade é um museu vivo da mais importante obra de Auguste Perret – a reconstrução de milhares de moradias usando concreto armado, devolvendo assim a dignidade à milhares de famílias. Perret foi um arquiteto importantíssimo para as teorias da arquitetura moderna e foi inclusive mentor de um dos arquitetos mais famosos do mundo: Le Corbusier.

Além disso, Le Havre flerta lindamente com a arquitetura brasileira. No meio da retidão e padrões de Auguste Perret estão as curvas de Oscar Niemeyer. Ou, como na foto a seguir que tirei, o retilíneo de Perret está no meio das curvas de Niemeyer: tudo depende do seu ponto de vista.

Obras de Niemeyer e Perret ao fundoOs vulcões de Niemeyer com fachada de Perret ao fundo

“Queria que a minha arquitetura revelasse uma nova etapa no campo do concreto armado e fosse tão simples e abstrata que, sem ser competitiva, acentuasse o impacto arquitetural que imaginava” – Oscar Niemeyer

Le Volcan (o vulcão) de Niemeyer é considerada uma obra consagrada da arquitetura contemporânea. Além da composição visual, o espaço de circulação de pedestres é rebaixado para proteger as pessoas dos fortes ventos da Normandia. Estar à frente de prédios tão lindos me fez ter aquele orgulho clichê de ser conterrânea de Niemeyer. Dentro da casca linda está um centro cultural com teatro, cinema, estúdios de gravação e salas para apresentações e exposições, formando a Casa da Cultura de Le Havre. O complexo foi concluído em 1982.

Caminhando pelos pontos da cidade é possível observar como a arte é viva em Le Havre. Uma das minhas obras favoritas é essa escultura de containeres que parecem dois arco-íris. Orando pelo dia que teremos algo parecido aqui em Santos.

Obra de Vincent Ganivet: arco de containeresO arco de containeres de Vincent Ganivet

Perret e seu apartamento modelo

Se a obra de Niemeyer chama a atenção pela quebra de padrões em Le Havre, a obra de Perret encanta pela solução. Desde 2005 Le Havre é considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, justamente pela visão de Auguste Perret. Ele foi um dos primeiros arquitetos a explorar massivamente o concreto armado, se destacando pelo novo pensamento de planejamento urbano e tecnologia de construção. Além de arquiteto, Perret era urbanista.

O concreto armado somado com a necessidade da reconstrução urbana de alta velocidade fizeram com que a arquitetura de Le Havre fosse considerado um exemplo de sistematização e inovação, abrindo novas possibilidades para uso de construções pré-fabricadas.

Mas olhar a história de fora é uma coisa. Entrar num apartamento intocado da década de 50, exatamente como Perret idealizou, é outra. Uma das atrações que mais amei em Le Havre foi visitar o showflat (apartamento modelo), uma habitação de 100 metros quadrados que é uma verdadeira viagem no tempo. O apartamento é maravilhoso e eu moraria ali tranquilamente, afinal não escondo de ninguém que sou louca pela estética dos anos 50 e 60.

Apartamento modelo de PerretO showflat existe graças a um grande esforço da população de Le Havre, onde muitas famílias doaram móveis, objetos e eletrodomésticos da época para permitir que todos soubessem o que era um apartamento original idealizado por Perret.

Como eu me formei em design de interiores, me deliciei nesse lugar. O apartamento possui uma configuração que os apartamentos de classe média começam a pensar décadas depois. Ventilação cruzada, configurações modulares e sobreposição do uso de espaços (coisas que vemos apenas hoje na cabeça dos arquitetos brasileiros) estão presentes na habitação modelo de Perret. Sem contar os móveis e decoração surreais de lindos, criados justamente na época do início da produção industrial do mobiliário doméstico. O próprio site da Unesco brinca com a frase “Ikea’s ancestors”, fazendo referência à gigante sueca da venda em massa de móveis.

Mas não ache que apesar de lindos, os apartamentos de Perret foram bem aceitos no início. Muitas famílias estranharam a proposta do “novo estilo de vida” proposto pelo arquiteto de origem belga. Foi realmente uma mudança e tanto até todos entenderem a visão de futuro de Perret.

O porto de Paris

Le Havre tem um traço curioso: a cidade é apelidada de “o porto de Paris”. É o porto mais importante da França em termos de movimentação de containeres.

É muito conhecida pelos esportes náuticos e também é onde muitos parienses vão quando querem pegar um cruzeiro. São Paulo está para Paris assim como Santos está para Le Havre. O tempo é quase o mesmo: você chega de Paris até Le Havre em aproximadamente duas horas de trem ou de carro. São 160 linhas e 170.000 passageiros de cruzeiros todos os anos na cidade francesa.

Vista de Le HavreUm mix do que é Le Havre: porto, obras de arte e Niemeyer na mesma foto

Cidade invertida

Com os bombardeiros da guerra e a reconstrução, Le Havre é uma das únicas cidades do mundo que subverte a lógica. Pense aqui em Santos: o centro da cidade, onde tudo começa é repleto de construções antigas e tombadas. Em Le Havre é o inverso: o subúrbio abriga os prédios mais antigos, poupados pelos bombardeios. O centro foi devastado e a cidade quase foi totalmente dizimada. Portanto o centro é novo e o subúrbio é velho, sendo uma cidade de padrões invertidos.

A praia de Le Havre

A praia de Le Havre NÃO TEM AREIA. Toda a “faixa de areia” é composta por pedrinhas (ou pebbles). Não dá pra esticar a toalha e deitar e os hábitos dos banhistas são bem diferentes. De qualquer maneira a praia é uma delícia para caminhar no verão. O sol se põe no mar depois das 20 horas e as cabines coloridas da praia deixam tudo mais lindo.

Essas cabines são uma tradição francesa no verão: elas ficam lá quando o clima começa a esquentar e os franceses as alugam para guardar seus pertences de praia, além de usá-las como abrigo. É uma mistura de depósito com guarda-sol e para eles é como se fosse um marco de dias felizes do verão.

Cabines coloridas de Le HavreComo chegar em Le Havre

Minha recomendação é pegar o trem na Gare Saint Lazare em Paris direto para Le Havre. É importante consultar os horários, mas ao longo de um dia inteiro você encontrará aproximadamente de 4 a 5 opções. O preço varia entre 30 e 50 Euros cada trecho. É super simples e fácil.

Para ir de carro é quase o mesmo tempo (aproximadamente 2 horas). Se você ama dirigir, ir de carro pode ser uma excelente opção para aproveitar Le Havre e as cidades vizinhas como Etretat e Deauville, além de explorar algumas áreas mais distantes de Le Havre, como Saint-Adresse (super vale a pena ir!).

Hotel em Le Havre

Eu me hospedei no Hôtel Spa Vent d’Ouest, onde tive uma experiência maravilhosa. A começar por um quarto super aconchegante e bem decorado, uma cama impecável, uma localização ótima ao lado da igreja de Saint-Joseph e bem pertinho do mercado central. Além daquele café da manhã campeão e amenities Nuxe. No hotel tem um spa da Nuxe, mas acabei nem indo conhecer.

Consulte os melhores preços do Hôtel Spa Vent d’Ouest.

Quarto do hotel em Le HavreO hotel é quatro estrelas e fiquei lá por três noites com ótimo custo benefício. Mas se você estiver buscando hotéis baratos com boa localização, Le Havre tem outras boas opções que selecionei durante as minhas pesquisas.

Melhores atrações turísticas de Le Havre

The Perret Showflat (apartamento modelo), que é uma viagem no tempo

Maison du patrimoine – Perret Studio (localiizado na Place Auguste Perret)
Não é necessário fazer reservas. Dispõe de visitas guiadas em francês, inglês, alemão e italiano.
Quartas, sábados e domingos: 14h, 15, 16h and 17h
No verão francês (julho e agosto) abre mais dias: também às segundas, terças e sextas: às 14h e 15h

Docks Vauban, que é um shopping no cais

70 Quai Frissard, 76600 Le Havre, França
A arquitetura é maneira demais, tem cinema, boliche e lojinhas legais como Mango, H&M, Adidas, entre outras.
Funciona diariamente das 10h às 20h. Aos domingos abre 11h e fecha 19h.

Le fort de Sainte-Adresse / Les jardins suspendus du Havre

É uma mistura de forte histórico, com jardim e orquidário. Existe desde 1856 e fica a 70 metros de altura. Espécies de plantas de todos os cantos do mundo estão ali.
O visual é de tirar o fôlego e vale a pena ir com calma e ficar um bom tempo lá durante o verão e primavera.

Jardim no Fort de Saint-Adress

MuMa – Museum of modern art André Malraux

2 Boulevard Clemenceau, 76600 Le Havre, França
Obras importantíssimas de Monet e Boudin estão no MuMa, visto que Le Havre foi o berço do impressionismo e a cidade onde os dois se conheceram. Monet morou na casa de sua tia em Le Havre um tempão e foi na Normandia onde ele começou estudos bem importantes de sua obra. Quando estive no MuMa também me apaixonei pela exposição temporária de Pierre et Gilles, casal de artistas nascidos em Le Havre.
Não abre às segundas. Durante a semana fica aberto das 11h às 18h. Aos finais de semana fica até as 19h. Chegue cedo para evitar filas.

Église St-Joseph du Havre

130 Boulevard Francois 1, 76600 Le Havre, França
A igreja é um exemplo de construção religiosa bem diferente dos padrões da Europa, seguindo exatamente a linha dos prédios de Perret. Ela é pensada para que os vidros coloridos mudem completamente o interior da igreja conforme a luz entra. É lindo de se ver.

Onde comer em Le Havre

Em toda viagem eu adoro procurar o mercado central e em Le Havre não foi diferente. Por sorte ele ficava do lado do meu hotel.

Também pude aproveitar a excelente localização para conhecer uma feira de rua (maravilhosa) que rola domingo das 9h às 13h, bem em frente ao mercado central. Fica na Place des Halles Centrales e vale muito a pena para experimentar várias comidinhas, comprar queijos normandos (não deixe de fazer isso, sério!) e garimpar.

Para experimentar a gastronomia típica de Le Havre, recomendo o Restaurante Le Lyonnais (7 Rue de Bretagne, 76600 Le Havre, França). A entrada foi um pedaço de camembert com maçãs (dois ingredientes bem normandos), prato de peixe especial da casa e como sobremesa crème caramel. Estava MUITO delicioso.

Entre os pontos fortes da gastronomia de Le Havre estão os mariscos, servidos ao longo das dezenas de restaurantes da orla. Eu fui no Les Pieds dans l’Eau, mas acabei não comendo mariscos. Pedi um peixe frito que estava ótimo. Em Le Havre, abuse dos frutos do mar, que são muito frescos e saborosos.

E para fechar, esse prato de carne, camembert e bataatas no Oceane Beach foi uma experiência tão boa quanto a simpatia dos franceses que moram na praia. A gente se identifica, né? 🙂

Carne, camembert e batatas