Texto porVictória Silva
Jornalista, Santos

A sociedade está preparada para acolher autistas adultos?

São, em média, 8h10 quando o ônibus da linha 53 atravessa a Av. Washington Luiz.

Apesar do horário, o ônibus costuma ter poucos passageiros. Um deles é Carlos Alberto, que embarca com destino ao primeiro emprego. Ele é inspetor de alunos e também ajuda na secretaria do Colégio Interativo e Gato Xadrez.

Para não perder o horário, Caco levanta às 7 horas. Assim, tem tempo hábil de tomar banho, sentar à mesa para o café da manhã e, às vezes, jogar em seu computador. Em seguida, ele caminha até o ponto de ônibus e percorre um trajeto de menos de 10 minutos até seu local do trabalho.

A rotina, no entanto, não foi sempre assim. Caco tem 21 anos e é um dos 2 milhões de brasileiros que vivem no TEA (transtorno do espectro autista). Para autistas adultos como ele, tarefas que são tidas como simples – tais como, por exemplo, entrar em um ônibus – podem ser grandes pesadelos.

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Mas o que é autismo?

Quando sua mãe, Ana Lúcia, recebeu o diagnóstico do autismo ela não sabia o que a palavra significava. Na época pouco se falava sobre o transtorno e até os médicos tinham dificuldade para identificar a síndrome. Atualmente, o autismo costuma ser pauta da grande mídia – principalmente nos meses de abril e junho, quando são comemorados o Dia da Conscientização sobre o Autismo e o Dia do Orgulho Autista, respectivamente.

Só para ilustrar, até a Turma da Mônica tem um personagem que vive no TEA. E ele se chama André.

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Apesar disso, muitas pessoas ainda não entendem o motivo de o Caco ter demorado meses para conseguir entrar em um ônibus, ainda que acompanhado da mãe ou das psicólogas.

Se acaso você é uma delas, vamos a um breve resumo. O autismo é um distúrbio de desenvolvimento identificado através do comportamento de seus portadores. Estes comportamentos têm graus de seriedade diferentes em cada um, ou seja, existem autistas que nunca tiveram problema em andar de ônibus e outros que talvez nunca façam.

De acordo com a ciência, são múltiplas as causas para o problema. Mas elas ainda são desconhecidas, pois as pesquisas sobre o assunto são recentes. Nos dias de hoje, o diagnóstico costuma acontecer ainda na infância (até por volta dos 3 anos). E, por isso, muitas vezes a imagem do autismo está atrelada à de crianças, tanto na mídia quanto no próprio sistema de saúde. Portanto, boa parte dos tratamentos são pensados para os mais jovens.

Em outras palavras, a chegada da vida adulta (e da puberdade) não é fácil para quem tem autismo ou seus familiares.

Autistas adultos: o mundo está preparado para eles?

Desenvolvimento das habilidades sociais básicas

Essa dificuldade pode ser motivada pela ausência de habilidades sociais, o preconceito ou então a ausência de projetos voltados para eles. Falta auxílio tanto na socialização quanto para acolher os pacientes mais severos (se acaso a família venha a se ausentar).

“A maioria dos tratamentos é voltado para as primeiras dificuldades, ou seja, a verbalização, introdução alimentar e coisas desse tipo. Mas o meu filho, por exemplo, precisa de ajuda para outras coisas. Ele tem 30 anos e não sai à noite, não tem amigos e nunca namorou. Ele sente falta dessas coisas, acaba entrando em um quadro depressivo”, comenta Bruna*, mãe de Renato.

Aos 21 anos, Caco também não sai à noite com os amigos. Mas sua autonomia vem sendo conquistada aos poucos, com a ajuda da mãe e da equipe de terapeutas que o acompanha.

Seu primeiro emprego prova isso, já que foi um pedido de Ana Lúcia aos gestores da escola onde o filho estudou na infância. De acordo com ela, a ideia foi do filho mais velho e o objetivo era que ele (então com 19 anos) adquirisse responsabilidade e entendesse a hierarquia.

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No início, o trabalho voluntário acontecia apenas duas vezes por semana. Era Ana Lúcia quem acordava o filho, o levava e ia buscar de carro. Conforme a adaptação aconteceu, a carga horária aumentou até que ele passasse a ir todos os dias. Atualmente, ele recebe uma ajuda de custo. Seu objetivo é comprar um tablet com o dinheiro.

“Eu estou juntando para comprar um bom, que não trave com os jogos. Mas ainda tenho dificuldade de lidar com dinheiro, estou aprendendo”, comenta Caco.

“É o próximo passo, né filho?”, completa Ana Lúcia.

Segundo Tatiana Lopes, psicóloga comportamental que acompanha Caco, todo o trabalho desenvolvido nos últimos anos teve como foco o desenvolvimento da independência e da autonomia. Por isso, são trabalhadas as questões de lida social tais como, por exemplo:

  • Percepção do outro
  • Discernimento de sentimento e expressão
  • Reconhecimento dos signos sociais
  • Questões emocionais

Para Mônica Ranciaro, gestora da escola onde Caco trabalha, os resultados são perceptíveis. Além de perder o pavor de andar de ônibus, ela diz que ele se tornou mais centrado e também observador. Ainda de acordo com ela, ele está sempre pronto para ajudar no que é preciso.

Preparo da sociedade

Enquanto o menino de 21 anos se prepara para lidar com dinheiro, Ana Paula Chacur tem duas lutas paralelas. Primeiramente, preparar seus filhos Tom e Helena (ambos autistas) para o mundo e, em seguida, assegurar que a sociedade também estará preparada para recebê-los. Desde que recebeu o primeira diagnóstico (da filha), Ana Paula é uma ativista do autismo.

“Na época, a lei Berenice Piana ainda estava sendo tramitada. Então eu tive que ir para a sala de aula com ela, pois não tinha professor mediador. Me deparei com uma situação lastimável – tanto para os alunos que precisavam de atenção especial, quanto para os tidos como típicos”, lembra.

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Quando se mudou do Rio de Janeiro para Santos, ela conheceu Ana Lúcia (mãe de Caco) que também lutava pelo direitos dos autistas aqui em Santos com o grupo Acolhe Autismo. Logo em seguida, começou um trabalho na Secretaria da Educação e depois, na Câmara Municipal. Em ambos os lugares, sua pauta sempre abordou a necessidade de políticas públicas voltadas para o autismo.

Com o fim do contrato, a mãe de dois autistas deu início a uma nova jornada. Atualmente, ela organiza cursos com profissionais especializados em autismo. As aulas acontecem em maioria em Santos, mas já houve cursos no interior de São Paulo.

 “O objetivo é educar. Sejam mães e pais que receberam o diagnóstico e estão perdidos, professores, cuidadores. Enfim, a ideia é falar sobre o autismo aqui em Santos. Pois ir buscar esse conhecimento em SP ou no RJ custa caro, tem o ingresso, transporte, alimentação e outros gastos. Minha ideia é dar acesso a esse conhecimento aqui”, explica.

Clínica escola para autistas em Santos

Ao lado de Ana Lúcia e outras mães da cidade, ela encabeçou a luta pela construção da Clínica Escola para Autistas em Santos. A ideia foi apresentada há cerca de quatro anos e, de acordo com a Prefeitura, a estimativa é que a inauguração aconteça nos próximos meses.

Inclusive, a escola recebeu a renda do Baile da Cidade de 2018.

A clínica ficará no Marapé, em parte do imóvel da antiga escola estadual Braz Cubas. Atenderá autistas e pacientes com deficiência intelectual. No total, a estrutura terá:

  • 12 salas de atendimento
  • 2 salas de integração social
  • 1 sala de intervenção precoce

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Além disso, também estão confirmados dois espaços diferenciados. São eles a sala de estimulação sensorial e a sala de atividades diárias – também chamada de casa autônoma modelo (com banheiro, cozinha, sala e quarto). Para completar, o projeto ainda oferece salas de reunião, administrativas e sanitários. O equipamento funcionará com profissionais capacitados na área de educação física, fonoaudiologia, fisioterapia, psicopedagogia, terapia ocupacional e de educação especializada.

“Esse foi um passo muito importante para nós. Pois muitas das necessidades que pessoas autistas têm não eram atendidas até então. Um exemplo é tratamento odontológico: tínhamos a possibilidade de  imobilizar o paciente, mas não de seda-lo e às vezes é necessário. Com a clínica questões como essa serão resolvidas”.

Essa será a primeira Clínica Escola de Autismo do estado de São Paulo. O primeiro passo de um longo caminho. Em seguida, o objetivo é conquistar uma residência assistida.

“Um dia, eu vou morrer e a minha filha vai precisar de um lugar para ficar. O Tom tem mais autonomia, mas ela precisa de alguém que cuide”.

Outra conquista recente dos autistas em Santos foi a carteira de identificação da pessoa com TEA.

O objetivo é promover reconhecimento oficial e, consecutivamente, facilitar a identificação e o exercício dos direitos de pessoas com deficiência. Já que o autismo não tem características físicas e isso pode causar questionamento de pessoas desinformadas. Os interessados em solicitar suas carteiras de identificação devem se dirigir ao Poupatempo. A expedição é gratuita.

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O Caco, é claro, já tem a dele e a leva sempre em sua carteira. Afinal, ainda há quem ache que autismo é frescura ou que tem o direito de questionar os direitos de quem vive no TEA.

*A pedido dos entrevistados. os nomes foram alterados