Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Parem de nos matar: por que o racismo no Brasil está mais vivo do que nunca

Este é o grito negro. Precisa que eu desenhe, caro leitor, cara leitora? Para quem não entende “Vidas negras importam” é melhor “Parem de nos matar”?

Eu estou com 63 anos e, apesar de todo o racismo, da sociedade cega, privilegiada, pessoalmente tenho muito a agradecer. Posso manifestar o que sinto em palavras e, assim, acalmar o meu ser. É verdade, a falta do ar continua, mas estou viva!

Miguel, de 5 anos, não está. Agatha, de 8 anos, não está. João Pedro, de14 anos, não está. Guilherme, 15 anos, não está. Marielle, de 38 anos, não está. João Beto, de 40 anos, não está… Todos mais novos que eu!

Sim, minha origem é a África do ventre dilacerado, maculado. Venho de um povo arrancado à força da própria terra, submetido a todo tipo de desumanidade, a todo tipo de barbárie, exatamente por aqueles que consideravam meu povo original “selvagem”.

Não sei se, sem vestir a minha pele, você, caro leitor, caro leitora, consegue ter a dimensão do quanto eu estou exausta. Escrevo esta coluna ainda em lágrimas. Cansada de me assistir, de me ler morrendo, de me ver morrendo, invisível, negada.

Cansada da minha força guerreira! Eu sei que não tenho direito a descanso enquanto meu povo continuar morrendo. O que me fortalece é a clareza da necessidade de nos aquilombarmos, de nos unirmos, mais e mais, em nome da própria existência.

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Nós por nós

Preciso – e nesta luta sem trégua todos precisamos – de colo, carinho, abraço. Me lembro (antes da pandemia), depois de assistir ao documentário Libertem Angela Davis – sobre a luta ativista da filósofa afroamericana  – e o musical Elza Soares de ter sido abraçada por jovens negras e de termos chorado juntas. E elas disseram ao meu ouvido: “Se dói em mim, imagino na senhora”.

Por que dói mais em mim?

Porque a ferida não fecha nunca. Porque sempre dão um jeito de assassinar mais um. Deixar que mais um despenque do alto de um prédio. Que mais um receba uma saraivada de balas. Que mais um seja espancado, asfixiado, até a morte. E mais um, e mais um e mais um… E todos os crimes e criminosos – pessoas físicas ou jurídicas – ficam impunes.

Velha prática I

Eles se desfazem dos nossos corpos, usando os mesmos métodos de sempre. No começo, nos jogavam dos navios negreiros ao mar. Depois, deixavam que morrêssemos no açoite, nos pelourinhos. Tudo igual. Nada muda. E a luta contra o racismo, a crueldade, a frieza, está longe de terminar.

Há quem reclame que, para nós, tudo é racismo. E é. Brancos não morrem assim. Quantos brancos são espancados e assassinados dentro de supermercados?…

É verdade, nem todos os negros chegam a óbito. Em outubro de 2018, no mesmo Carrefour, Luís Carlos Gomes foi agredido porque abriu uma lata de cerveja dentro da loja. Teve múltiplas fraturas e está com uma perna mais curta que a outra.

Não é a justiça branca e racista que vai identificar o que é crime de racismo e o que não é crime de racismo. Não é a polícia branca e racista que vai identificar o que é crime de racismo e o que não é crime de racismo. Não é o Ministério Público, a Procuradoria Pública branca e racista que vai identificar o que é crime de racismo e o que não é crime de racismo. Não é o poder institucional branco e racista, que vai dizer o que é crime de racismo e o que não é.

Quando o povo negro denuncia o crime de racismo, é racismo. Isso porque o povo preto sabe o que é racismo, vive o racismo as 24 horas de seu dia, desde que nasceu.

Asas da Liberdade

Quando eu nasci em 20 de abril de 1957, faziam algumas dezenas de anos que o povo negro escravizado havia sido “libertado” – 350 dos 520 anos da história do Brasil têm a marca da escravidão negra e indígena. Liberdade que nunca ninguém sentiu. Liberdade que todos perseguimos.

Estou falando da liberdade de existir, de ser, de ir e vir sem ter um segurança seguindo você, sem medo de acharem que seu carro é roubado – como aconteceu com Januário Alves de Santana, em 2009, no mesmo Carrefour, acusado de roubar seu EcoSport.

Somos Zumbi

No 20 de novembro de 2020 – Dia Nacional da Consciência Negra, data criada em 2003 para celebrarmos a vida dos que vieram antes, nos fortalecermos com a história de luta dos que vieram antes, de festejarmos nossas conquistas, as eleições históricas de 15 de novembro – fomos consumidos por mais um assassinato, como aconteceu com o chefe do Quilombo dos Palmares.

Passei a minha vida inteira em marchas, passeatas e protestos por liberdade, respeito, pelo direito a existir. Me lembro em 2019, já morando em Santos, quando fui à Marcha da Consciência Negra. Conheci Jarino, um professor. Ele estava com sua filha Manuela, de 5 anos. Ela, cansadinha, pedia colo e o pai insistia: “É importante a caminhada, filha. Cada passo é importante na luta”. Depois, apontou na minha direção e disse: “Olhe a tia”. Eu abracei a causa e contei para a criança: “Essa caminhada é pela nossa liberdade. Há mais de 50 anos eu marcho!”

Imaginem o Brasil sem negros… Vamos lá: imaginem o Brasil sem negros… O meu povo que construiu este país. Nós existiríamos em África, mas este país não existiria se não fossem nossos corpos negros. 

A alma deste país é negra – aceitem ou não. É verdade  que não fizemos isso por livre e espontânea vontade. Mas o Brasil é obra nossa. Nós garantimos a alimentação, as riquezas ostentadas pelos brancos. Parem de nos matar!

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Homicídios disfarçados

Quando ecoamos nosso grito por direito à vida é importante compreender que nossas mortes também acontecem todos os dias, desde sempre, por meio de assassinatos ou tentativas de assassinatos disfarçados.

A África é um continente com 30 milhões de quilômetros quadrados, cobrindo 20,3% da área total de terra firme do planeta. É o segundo planeta mais populoso da Terra, onde se fala 30% dos idiomas de todo o mundo – 2.092 línguas e cerca de oito mil dialetos.

Quando fomos sequestrados, traficados e escravizados nos separaram das nossas famílias, dos nossos clãs, reinos, nações, países. Inviabilizaram o nosso existir juntos. Tivemos de nos reinventar para nos comunicar física e espiritualmente. Isso é assassinato de um povo.

O que é o estupro se não um jeito de querer destruir a essência do outro? As mulheres que vieram antes não fizeram amor, foram violadas. E, hoje, carregamos a pecha de ter “a cor do pecado” – isso não é elogio. Os “pecadores”, os criminosos que sequestraram e macularam os nossos corpos, são brancos.

Os mesmos corpos brancos que seguem nos matando, com o beneplácito do governo. Quando morremos por causa de um vírus, durante uma pandemia, é assassinato. 

Estamos no abandono desde a tal da lei da abolição. Somos assassinados nos presídios, nos supermercados, nas ruas, nos hospitais, nas escolas

Nas escolas?!

Sim, porque nossas crianças não têm direito nem ao abraço do professor, abraço que acolhe, estimula, reconhece o esforço no processo educativo.

Somos assassinadas toda vez que vemos nossos filhos serem assassinados.  Assassinados pela milícia, pela política, pela invisibilidade da sociedade.

Até os negros negacionistas, apesar da falta de consciência racial, são assassinados, pouco a pouco, dia a dia, sem se quer perceber que se acreditam algozes, mas são vítimas como todos que têm “a cor da noite”, como canta Jorge Aragão. São assassinados como pessoas, povo, raça, humanidade, porque não se veem nem são vistos. Quer dizer, não existem, têm a alma escravizada.

Todos os negros guardam cicatrizes da escravidão. Mesmo os que tentam escondê-las.

Ação e reação

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica as pessoas da raça branca como “brancas” – ninguém se autodeclara loiro, moreno, ruivo, branco puro… Já a raça negra é dividida em “pardos” e “pretos”. Mortos, todos e todas, somos negros.

Mas não é a cor da nossa pele que nos define como povo preto. É a nossa alma preta que nos define e fortalece. É a nossa alma preta que conta quem somos. É o nosso espelho ancestral que nos reflete.

Vidros quebrados podem ser consertados. E quanto a vidas assassinadas? Qual a reparação?  Nosso país protege a propriedade, mas não protege a nossa vida. É preciso refletir. Seguros cobrem despesas, mas não devolvem existências exterminadas. E parece que a sociedade sofre a doença da surdez.

Vidas negras importam, vidas negras importam, vidas negras importam…

Não quer dizer que todas as vidas não importam. Estamos dizendo que vidas negras importam. Que todo mundo tem que entender que vidas negras importam. Não se pode filmar um assassinato. É preciso impedir que ele aconteça!

“Não confundam a reação do oprimido com a violência do opressor” – nos chama a nossa atenção o ativista negro americano, assassinado, Malcom X.

Vidas negras têm de ser consideradas tão importantes quanto as vidas brancas. São pessoas que têm a pele clara, que são ou se acham brancas, que estão matando pessoas negras! E nada justifica um assassinato. Nada justifica um assassinato. Nada justifica um assassinato.

Atitude antirracista

Lutar contra o racismo é nunca mais pisar no Carrefour. Lutar contra o racismo é a pessoa branca ter consciência de que ela sempre se valeu do trabalho negro, que a sua riqueza, sua possibilidade de educação, de poder, passa pela vida de um negro que trocou fraldas para você, limpou sua casa, garantiu a comida na sua mesa, o cafezinho no escritório, que dirigiu a ambulância para salvar a sua vida… Isso para dizer o mínimo.

Vale assistir Histórias Cruzadas, que conta muito da ignorância do ser racista – mãos pretas podem fazer a comida que o branco vai comer, mas bundas pretas não podem frequentar a mesma privada.

Aqui e em África, todos foram acolhidos e, lá e aqui, enganaram os povos – com a cruz e o canhão. Não existe outro caminho para o fim do racismo, a não ser reeducação de escravocratas e seus descendentes. Não queremos vingança. Queremos reparação. Parem de nos matar.

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Aos que conseguem, minimamente imaginar a dor que eu sinto, deixo o convite para o combate efetivo ao racismo. NADA, nada, justifica um assassinato, seja com as próprias mãos, seja com armas brancas, armas de fogo ou com a arma da  indiferença.

Quantos de nós vão precisar morrer para o despertar branco, para a humanização dos nossos corpos negros. Neste planeta há espaço para todos nós.

Repitam comigo à exaustão:

“Vidas negras importam. Parem de nos matar. Vidas negras importam. Parem de nos matar Vidas negras importam. Parem de nos matar Vidas negras importam. Parem de nos matar Vidas negras  importam. Parem de nos matar Vidas negras  importam. Parem de nos matar Vidas negras importam. Parem de nos matar Vidas negras  importam. Parem de nos matar Vidas negras importam. Parem de nos matar Vidas negra importam. Parem de nos matar Vidas negras  importam. Parem de nos matar…”