Racismo e religião: entre a cruz e o chicote
“Eu tenho um santo / Padroeiro, poderoso/ Que é meu pai Ogum/
Tenho outro santo / Que me ampara na descida / Que é meu pai Xangô /
E quem me ajuda / No meu caminhar, nessa vida/ Pra ir na corrida do ouro/
É Oxum / Nas mandingas que a gente não vê / Mil coisas que a gente não crê /
Sugestões para vocêValei-me, meu pai, atotô, Obaluaê/
Por isso que a vida que eu levo é beleza /Eu não tenho tristeza e só vivo a cantar /
Cantando eu transmito alegria / E afasto qualquer nostalgia pra lá /
E há quem diga que essa minha vida /Não é vida para um ser humano viver/
Pode ser…”
Acredito que é impossível não identificar a letra desta música de Zeca Pagodinho, chamada “Minha Fé”
Ele se refere a quatro orixás de religiões de matriz africana no Brasil:
- Ogum, símbolo da multiplicidade da natureza humana, que ajuda a integrar nosso lado luz e nosso lado sombra, paz e guerra; orixá que adora a tranquilidade, mas é ser energizado pelas lutas do mundo.
- Xangô, deus do fogo e do trovão, que mistura virilidade, violência e Justiça, ao olhar tudo de maneira imparcial.
- Obaluaê, o único orixá ligado ao princípio da vida, energia progressiva, e ao princípio da morte, energia regressiva; da saúde e da doença, da dinâmica do existir, o médico dos pobres.
- Oxum, que inspirou esta coluna, a deusa das águas doces (rios, fontes e lagos) e, também, deusa do ouro, da fecundidade, do jogo de búzios, do amor e que, na sua versão católica, é a padroeira do Brasil.
Daí, decidi escrever sobre intolerância e sobre racismo religioso.
Me vi diante da seguinte questão:
Como o país que tem a maior população negra fora da África, o país do racismo estrutural, do mito da Democracia Racial, tem como padroeira uma santa pretinha?
E curiosidade: uma santa que teve sua imagem encontrada nas águas doces do rio Paraíba do Sul!
Mas Oxum, a deusa das águas doces – vale repetir – não é a única santa da Igreja Católica. Na verdade, todos os orixás têm sua versão católica.
Mas vou me limitar aos cantados por Zeca Pagodinho:
Oxum, além de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é também Nossa Senhora das Candeias.
Ogum é São Jorge, na região sudeste, e Santo Antônio, na Bahia.
Xangô é São Jerônimo, Santo Antônio, São Pedro, São João Batista, São José e São Francisco de Assis.
Obaluaê é São Lázaro e São Roque.
Por que isso?
Porque sequestrados, traficados, vendidos, fomos separados de nossas famílias, de nossos clãs, que tinham seus orixás particulares, e impedidos de professar a nossa fé do jeito que a concebemos, a partir dos nossos ancestrais. Aqui, em território nacional, tivemos de reinventar nossa religiosidade, como tivemos de reinventar o nosso existir e resistir.
Racismo e religião de mãos dadas
Para driblar o que seria uma impossibilidade de conexão com o divino, os negros criaram um link entre orixás e santos. Assim acontece o chamado sincretismo religioso, que pode variar de uma para outro região do país, de acordo com os povos africanos lá escravizados.
Essa equivalência entre os orixás, divinizados há mais de cinco mil anos, e os santos da Igreja Católica se estabelece no período colonial, com a chegada ao Brasil dos primeiros africanos de origem iorubá, povo que habitava a região atual de Nigéria, Benin e Togo.
Hoje, no Brasil, os mais cultuados são 12 orixás – um número pequeno, diante dos mais de 200 existentes na África Ocidental, a célula mater dessas divindades.
Aí, a gente nem precisa perguntar quem nasceu primeiro – se Oxum ou Aparecidinha…
Oxum nasce antes de Aparecidinha – Nossa Senhora da Conceição Aparecida é proclamada Rainha do Brasil e sua Padroeira Principal em 16 de julho de 1930, por decreto do papa Pio XI. A imagem havia sido coroada, em nome do papa Pio X, por decreto da Santa Sé, em 1904. E Oxum é de muito antes de Cristo.
Detalhe: esse negócio de sincretismo não é coisa de preto. Nas missas da Igreja Católica, a roupa do padre, os ornamentos, o púlpito, são “inspirados” no paganismo, na Mitologia greco-romana. As igrejas se assemelham aos templos dos deuses.
E nada disso tem a ver com Deus ou com Jesus.
Aliás, o que a gente pode responder sobre a religião de Deus ou de Jesus?
Jesus pregava ao ar livre, na natureza, onde são feitas as oferendas aos orixás… É verdade que ele foi crucificado como “Rei dos Judeus” – mas esta é só uma cruel ironia!
Jesus não é cristão também. Nasceu antes disso. E contava de seu jeito ético de estar na vida conversando com crianças, cobradores de impostos, prostitutas, pescadores, pessoas em situação de rua, sem preconceito nem discriminação.
É preciso pensar…
Ou usar a lógica espiral de Exu, que inclui o tempo de reflexão.
Tudo a mesma coisa…
Fomos todos criados com cérebro para desenvolver o intelecto.
Fazer as sinapses, proporcionar o bom funcionamento dos neurônios, são desafios presentes na vida dos que sentem pulsar o coração e o sangue correr nas veias…
Tem um monte de coisas que, talvez, a gente morra sem entender – mesmo assim, faz parte da vida tentar, buscar…
Eu, por exemplo, não encontro justificativa para a intolerância, para o racismo religioso.
O que existia antes de Deus?
Se eu não consigo responder a esta questão, como posso localizar Deus no Protestantismo, ou no Catolicismo, ou no Messianismo, ou no Candomblé, no Judaísmo, na Umbanda, no Budismo, na Quimbanda, no Espiritismo, no Judaísmo, nos vários Cristianismos que existem?…
Minha impressão/sensação/percepção/intuição me diz que Ele, Deus, está acima de todas as religiões.
E uma leve imersão em todas as religiões vai nos levar à Sua presença. E podemos senti-lo, também, quando o entendemos como sinônimo de Natureza – ideia defendida por Baruch de Espinosa, um dos grandes racionalistas e filósofos do século XVII.
Para mim, ok – compreender Deus como matéria-prima de tudo, existindo a partir de toda e qualquer criação, como defende o filósofo – e também teólogo – excomungado pela Igreja Católica.
Mas por que tem gente que não consegue?
Em que, exatamente, a minha fé atrapalha a fé da outra pessoa?
Em que medida, exatamente, a fé evangélica interfere na fé umbandista, ou católica, ou messiânica…?
O que justifica o inferno para uns e o céu para outros?
Por que só meia dúzia de escolhidos?
Qual a lógica?
Qual a origem desta informação?
Não vale responder que está na Bíblia – e eu explico o porquê.
1001 mãos
A Bíblia trata da relação das pessoas com o divino, registra fatos através dos tempos, por meio de pinturas, desenhos, símbolos, diferentes formas de escrita, diferentes idiomas…
Nos primeiros 900 anos, todas as informações contidas na Bíblia foram passadas de boca em boca. Fala-se em quarenta autores de línguas diferentes.
A primeira impressão, de 1456, com 200 exemplares, foi editada com 642 páginas em latim. Depois, em 1590, o Papa Clemente VIII decidiu alterar, principalmente, o Novo Testamento. E é esta a Bíblia que vale até hoje.
Informação relevante: o Papa Clemente excluiu os Evangelhos Apócrifos, que são uma coletânea de textos, alguns anônimos, escritos nos primeiros séculos do cristianismo.
Resumindo: censura. De todos os apóstolos, de todo mundo que conviveu com Jesus, só Marcos, Mateus, Pedro e João tiveram espaço no livro sagrado. Os outros dois do Novo Testamento não conviveram com Jesus: Paulo o encontrou no Caminho de Damasco e Lucas soube de Jesus pela boca de Paulo.
A Igreja Católica – usando uma expressão atual – “cancelou” Madalena durante séculos – foram precisos 500 anos para que ela deixasse de ser prostituta, adúltera e pecadora e se tornasse santa!
E a Bíblia não é única. Tem a Bíblia da Igreja Católica Apostólica Romana, com 72 livros; a dos Protestantes e Anglicanos, com 64 livros; a da Igreja Católica Ortodoxa, com 76 livros; a do Judaísmo, o Torá, com os cinco primeiros livros (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, que é o pentateuco), e a do Islamismo, que é o Alcorão – palavra literal de Deus, revelada ao profeta Maomé, ao longo de 23 anos.
Incluam-se, ainda, nas mãos que escrevem a Bíblia até os dias atuais, diferentes autores, tradutores, idiomas, épocas, valores morais, valores sociais, interesses políticos, interpretações pessoais…
O livro mais lido do planeta foi e segue sendo escrito com muito mais que mil mãos.
Eu gosto de resumir o ensinamento que importa na Bíblia a dois mandamentos de Jesus, que incluem três amores: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Aí a religiosidade que me sustenta, definida na ação proposta por Aquele que eu chamo de Mestre: amar, muito, sempre, incondicionalmente.
Por isso eu não consigo entender o racismo religioso, a intolerância.
Mitologias são histórias
Muito do que se determinou chamar de “Mitologia” também está contido na Bíblia.
Em Eclesiastes, capítulo 3, versículo 20, está escrito: “Tudo e todos se dirigem para o mesmo fim: tudo vem do pó e tudo retorna ao pó.” E a Mitologia Africana conta que Oxalá, detentor da vida, tentou criar o homem do ar – mas ele desvaneceu. Tentou a madeira e a pedra – ele ficou muito duro. Tentou o fogo – e o homem se consumiu. Nanã, detentora da morte – vendo Oxalá na tentativa-e-erro para a criação da humanidade -, tirou lama das profundezas do lago onde morava e deu para Oxalá, mas com a condição de que, na morte, o homem voltasse a ser pó, a ser lama.
Quer dizer, não importa se é mito judaico-cristão, helênico, africano, hindu, asteca… – o homem foi formado a partir do barro.
As religiões conversam entre si, se confundem. O que as diferencia é o divulgador. Toda a verdade é, apenas, ponto de vista: ponto de vista de quem ocupa o trono, ponto de vista de quem está no púlpito, ponto de vista de quem está vai ao altar, ponto de vista de quem está nas praças, nos templos, as igrejas, sinagogas, terreiros…
A Torá, escrita há 3.100 anos, durante a jornada dos filhos de Israel – que está no Antigo Testamento -, no Novo Testamento é referenciada como sinônimo de Lei.
Por isso eu não consigo entender a intolerância religiosa, o racismo.
E ecoo a voz e a inspiração de Diogo Nogueira, quando na música “Força Maior” (https://www.youtube.com/watch?v=Q1YSM3KP-eg) canta:
“Minha força é a fé que carrego no fundo do peito /
Quando nada dá pé é amém, é axé, não tem jeito /
No terreiro ele é Oxalá, no oriente ele é Alá /
Ninguém sabe como explicar essa força maior /
Ele sempre estende a mão, não importa a religião /
Não tem raça, não tem nação, porque Deus é um só …”
A cruz e o chicote
Mesmo assim, em nome de Deus e de Jesus, os padres portugueses foram cúmplices na escravidão de negros africanos:
“Nunca consideramos esse tráfico ilícito. Na América, todo escrúpulo é fora de propósito” – declarou o reitor do colégio jesuíta de Luanda, Luís Brandão, ao justificar o envolvimento da ordem no tráfico de escravos com o Brasil, conforme registrado na página pag. 335 do livro Escravidão, do jornalista Laurentino Gomes, no capítulo intitulado “A Cruz e o Chicote”.
E o livro conta mais na página seguinte: que quase todos os bispos, padres, ordens religiosas e conventos católicos no Brasil, em Angola e outras regiões da África e da América, possuíam escravos – e não eram poucos -, inclusive os franciscanos, que faziam voto de pobreza absoluta.
Como ilustração, ainda, o jornalista destaca, na página 337, que o padre Antônio Vieira – outro português reverenciado no Brasil – atribuía o comércio de escravos a um grande milagre de Nossa Senhora do Rosário, porque, segundo ele, tirados da barbárie e do paganismo, os cativos teriam a graça de serem salvos pelo catolicismo.
Esse, inclusive, o teor da homilia que pregou para uma irmandade de cativos em 1633, quando sustentou que os escravizados eram “bem-aventurados”, felizes! Por isso, cabia a eles não só aceitar o sofrimento do cativeiro, mas alegrar-se com a inestimável oportunidade que tinham de imitar os sofrimentos de Jesus Cristo no calvário.
A justificativa para tal crueldade?
Nos livrar do demônio, nos impor a moral da civilização ocidental! Provavelmente, o mesmo demônio – ou a mesma moral – que crucificou Jesus, comandou guerras de ódio, acendeu fogueiras de perseguição e extermínio e que, até os dias atuais, mantém povos em “guerra santa” ou impedidos de viver livremente a sua conexão espiritual.
E tudo em nome do amor, da bondade, da justiça, da misericórdia!!!
Isso nunca teve e não tem nada a ver Deus.
“Quem é intolerante com a religião alheia alimenta a própria arrogância ao acreditar que sabe mais sobre os segredos do Universo do que outros seres humanos. Em uma galáxia tão vasta, cheia de estrelas e mistérios, é pura prepotência pensar que somos os donos da razão e que conhecemos o único caminho que leva as pessoas até Deus” – desabafa a escritora Paulina Chiziane, a primeira romancista moçambicana, autora de Balada de Amor ao Vento.
E ela nos propõe descolonizar o pensamento:
“Deus não é cristão, não tem religião e não é propriedade privada. Qualquer povo, qualquer cultura, tem o direito de procurar Deus à sua maneira. Eu africana, eu moçambicana, tenho a minha maneira de dizer Deus. Por que tenho que dizer Deus na língua do outro? Por que eu tenho que dizer Deus na língua de uma raça que se acha superior às outras?”
Elza Soares segue a mesma linha quando canta que “Deus é Mulher”, na música “Deus Há de Ser”, de sua autoria:
“Deus é mãe / E todas as ciências femininas /A poesia, as rimas/ Querem o seu colo de madona / Pegar carona nesse seu calor divino / Transforma qualquer homem em menino / Ser pedra bruta nesse seu colar de braços / Amacia a dureza dos fatos / Deus é mulher / Deus há de ser / Deus há de entender / Deus há de querer / Que tudo vá para melhor / Se for mulher, Deus há de ser / Deus há de ser fêmea / Deus há de ser fina / Há de ser linda / Há de ser…”
O racismo religioso é a prova escancarada de que muitos cristãos não compreendem a ética de Jesus, ainda. A intolerância religiosa são as pedras que Jesus disse para só atirar quem nunca tivesse cometido nenhum engano na vida. O racismo religioso desconhece o mandamento que diz “não matarás”. Logo, não estimularás o uso de armas, a violência, o confronto, o desrespeito…
É. Eu não faço parte da turma que diz que política, religião e futebol não se discutem. Eu discuto sim, sem disputar, mas para partilhar pontos de vista, abrir a minha mente e abrir outras mentes. Afinal, não é por outro motivo que vivemos neste mundo juntos e misturados, apesar de tudo.