Precisamos falar sobre privilégio branco
“O Brasil é um país racista.
O Brasil é um país racista.
O Brasil é um país racista.
Precisamos falar de forma honesta:
O Brasil é um país racista.
O Brasil é um país racista.
A gente precisa assumir que isso é real.
O Brasil é um país racista.”
Esta fala é da youtuber e jornalista Tia Má. Eu faço minhas as palavras dela, porque revelam, de forma simples e direta, a proposta desta coluna Vozes Pretas.
A ideia é, sim, tirar todo mundo da zona de conforto. Com respeito, cuidado e propondo muita reflexão. Isso inclui, naturalmente, todas as pessoas que acreditam não ser racistas e, também, todas as que acreditam que o racismo não existe!
Foto: Jessica Felicio/Unsplash
Por que eu uso a expressão “zona de conforto”? Pelo simples fato que o racismo tem como um de seus frutos o “privilégio branco”.
E antes que alguém queira contra-argumentar dizendo que pessoas não negras, pobres e miseráveis, também vivem nos morros, favelas, cortiços e palafitas, é importante entender que privilégio branco não significa que a vida dos brancos é fácil e, sim, que o quesito cor/raça não interfere no tamanho da dificuldade.
As políticas sociais – conquista do povo preto – também costumam ser apontadas como sinônimo de um Brasil não racista. Mas vale a pergunta: por que políticas sociais existem?
Brasil e o privilégio branco: uma história
Oficialmente, o Brasil, do ponto de vista de Portugal, tem 520 anos. E oficialmente, também, do ponto de vista de Portugal, há 132 anos, este não é mais um país escravagista.
Só que quando se assinou a lei de extinção da escravidão, os negros escravizados não tiveram direito a Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, indenização por trabalhos forçados, maus tratos, mortes… Ao contrário. Foram abandonados à própria sorte pelo poder público e pelos que usaram e abusaram de seus serviços, pelos que enriqueceram com a nossa mão-de-obra. E pensar que temos “fama” de vagabundos!
Nunca houve liberdade concedida. Nossa liberdade é conquistada, dia a dia, desde que nossos ancestrais foram jogados na que hoje é nossa terra sim. Somos brasileiros. Esta terra é nossa também.
Mas vamos enumerar só alguns privilégios de que brancos usufruem simplesmente por serem brancos, para que, todos, possamos, pelo menos, começar a enxergar as “Querelas do Brasil”, como escreveu o compositor Aldir Blanc e cantou Elis Regina, aquela música que diz “o Brasil não conhece o Brazil…” .
Entre vida e morte
O primeiro privilégio branco para o qual quero chamar atenção está escancarado, de tão atual.
Um estudo liderado por pesquisadores da PUC-Rio, divulgado no último dia 27 de maio, sobre óbitos de COVID-19, constatam que pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores de morte (71,3%) em relação àquelas com nível superior (22,5%).
Combinando raça e índice de escolaridade, o cenário é ainda mais desigual: pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). E levando em conta a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.
Ainda sobre morte, o que dizem as estatísticas de assassinatos: 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. E temos, para corroborar com os números de pessoas mortas, o caso recente do menino negro, de 5 anos, Miguel Otávio Santana Silva, que morreu após cair do 9º andar por descuido de Sari Corte Real, a patroa, branca, da mãe de Miguel.
Mirtes Renata de Souza era empregada na casa de Sari e levou seu filho ao trabalho porque as escolas estão fechadas e deixou seu filho aos cuidados da patroa para levar o cachorro para passear. Mas crianças dão trabalho e a patroa colocou o menino de 5 anos, sozinho, dentro de um elevador. A polícia acusou a patroa por homicídio culposo. Mas ela desembolsou R$ 20 mil e vai responder pelo crime em liberdade! Imaginemos, só imaginemos, uma situação inversa. Imaginemos que a criança fosse filha da patroa. Onde estaria a empregada hoje? Privilégio branco. “Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na TV”, desabafou Mirtes.
Alguém duvida?
Privilégio branco no mundo do trabalho
Eu cresci ouvindo minha mãe dizer que para eu ser tratada como igual, teria que ser duas vezes melhor. E como eu, muitos negros e negras ouviram isso de seus pais.
Estou lendo Minha Vida, de Michele Obama, e ela conta história semelhante. E nós vamos à luta sim, ostentando nosso cabelo natural, mas preocupadas se o nosso cabelo ou cor da pele irá nos impedir de conseguir um emprego.
E não para aí. Mas será que as pessoas vão acreditar que eu consegui por mérito, competência ou vão pensar que fui contratada para a empresa cumprir cotas?
Quando fiz faculdade, nos anos 1970, não existia política de cotas e eu era a única caloura na primeira escola de jornalismo do país, Cásper Líbero. Orgulho da família. Tive a honra de ter um veterano negro passando o trote, mas a outra veterana – com a minha chegada éramos três na faculdade inteira – teve de ouvir “negra suja não põe a mão em mim”. Primeiro dia de aula. Para uma pessoa branca, viver esta situação é inimaginável!
Mas somos um povo forte, valente e a gente segue em frente. Não sei se vocês repararam a cor da maioria das pessoas que atua na área da saúde – pensem além dos médicos. Pois saibam que não são poucos os pacientes que se negam a ser atendidos por enfermeiras e auxiliares negras e que duvidam da competência dos médicos negros.
Vizinhança e privilégio branco
Sempre ouvi que até que um familiar acuda, o vizinho já socorreu. Mas pessoas negras, quando se mudam para bairros perto da praia, têm de pensar se terão ou não problemas com seus vizinhos. Ou mesmo se seus filhos e filhas serão discriminados no playground ou na nova escola onde vão estudar.
Ser o único negro ou negra no ambiente de trabalho, na escola, no prédio, na vida em sociedade despende uma energia inimaginável. Apesar de sermos 50% da população, as pessoas simpáticas insistem em nos chamar de “exóticas”. Sabe o que informa o dicionário sobre este adjetivo? “Não originário do país, estrangeiro, esquisito, excêntrico, extravagante”. Somos brasileiros.
Outra prática, inconsciente, mas que embute o racismo no olhar, é colocar um adjetivo ou advérbio nos elogios. Eu ouço muito: “Você é uma negra linda”! E sempre me pergunto: “Por que não dizem, simplesmente, que eu sou linda?” Tem também o: “Apesar de negra, você é muito inteligente”!!
E, em tempo de pandemia, de ficar em casa, quando ligamos a TV, o que vemos? O privilégio explícito. A maioria das pessoas não tem a mesma cor da pele que eu. Nem os entrevistados nos telejornais. E todas essas histórias com protagonistas e heróis brancos não fortalecem a minha autoestima e o meu senso de importância na sociedade.
Quando estou na TV, é porque mais um dos meus foi assassinado na outra América. Assim, voltamos à violência que nos mata, dia a dia; que nos viola, dia a da.
Gênero e privilégio branco
Eu, mulher negra, sei que corro mais risco de sofrer violência sexual, conforme dados do relatório ‘A cor da violência: Uma análise dos homicídios e violência sexual na última década’, realizado pela Rede de Observatórios da Segurança e divulgado em março deste ano.
A pesquisa inédita analisou dados do Sistema Único de Saúde (SUS), do período de dez anos, e constatou que as mulheres negras sofreram 73% dos casos de violência sexual registrados no Brasil, entre 2009 e 2017, enquanto as mulheres brancas foram vítimas em 12,8%.
Pode respirar agora.