Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Negrocracia e o poder para o povo preto

“Um mito é uma narrativa de caráter simbólico-imagético, ou seja, o mito não é uma realidade independente, mas evolui com as condições históricas e étnicas relacionadas a uma dada cultura, que procura explicar e demonstrar, por meio da ação e do modo de ser das personagens, a origem das coisas.” 

É assim que a Wikipédia define esta composição das vogais ‘i’ e ‘o’ com as consoantes ‘m’ e ‘t’.

E aqui no Brasil, dia a dia, percebemos o mal que todo e qualquer mito pode fazer ao nosso viver.

Nosso foco, entretanto, será o mito da democracia racial, criação do sociólogo e historiador pernambucano Gilberto Freyre, exaltada pelo presidente-ditador Getúlio Vargas e utilizada como marketing nacional.

A mesma autodefinida “enciclopédia livre” nos ensina queDemocracia é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente – diretamente ou através de representantes eleitos – na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal”. Bonito, não é mesmo?!

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No passado, eu diria, “o papel aceita tudo”. Hoje, nós sabemos, a rede mundial de computadores também aceita tudo! E o mito da democracia racial está na lista das fake news que “deram certo”.

A democracia no Brasil é falha também porque os negros e negras não estão representados.

Cidadania não é brinde. Cidadania é conquista. E as leis que atendem e/ou assistem e/ou vão ao encontro das necessidades do povo preto funcionam mal ou não funcionam nada.

Olhar legal

Nem precisamos olhar para os 520 anos desde que o Brasil foi apropriado por Portugal. Nosso ponto de partida pode ser uns cinquenta anos antes da lei da abolição – e eu vou, deliberadamente, escrever algumas leis em letras minúsculas para simbolizar o quanto elas inviabilizaram e inviabilizam a nossa plena cidadania.

  • 1837 – lei de educação, a primeira do país: negros não podem ir à escola.
  • 1850 – lei das terras: negros não podem ser proprietários.
  • 1871 – lei do ventre livre: o ventre é livre, mas a dona do ventre não e seu filhos não podem frequentar escolas e espaços públicos e têm de “pagar” o sustento, trabalhando.
  • 1885 – lei do sexagenário: se conseguir viver até os 60 anos, o negro escravizado torna-se “livre” – mas sem direito a aposentadoria, recebimento dos “atrasados”, indenização…
  • 1888 – lei da abolição: duas linhas decretando o abandono e a criminalização do povo preto, após mais de 350 anos de escravização.
  • 1890 – primeiro código penal brasileiro – quem não tem trabalho, quem joga capoeira, quem pratica o curandeirismo, quem vive em situação de rua está fora-da-lei.
  • 1951 – Lei Afonso Arinos, nº 1.390, proíbe a discriminação racial no Brasil.
  • 1968 – lei do boi: vaga nas escolas técnicas e nas universidades para brancos, filhos de donos de terras (vide o ano de 1850).
  • 1985 – Lei Caó, nº 7.437 – uma referência ao seu autor, o advogado, jornalista e militante do movimento negro, deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira -, dá nova redação à Lei Afonso Arinos e inclui, entre as contravenções penais, a prática de preconceito de raça e cor.
  • 1988 – a chamada Constituição Cidadã, a atual, transforma racismo em crime, inafiançável e imprescritível.
  • 1989 – nova alteração da Lei Caó determina a pena de reclusão por discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência.

Entre o desculpismo e a loucura

A transparência racista no Brasil faz com que o preconceito e a discriminação estejam naturalizados na sociedade. Mas como, em tempos de big brother, tudo é gravado, o que temos assistido é a “política do desculpismo”, seguida pelo “diagnóstico” de uma loucura qualquer. Assim, fica o dito pelo não dito. Nem autuação nem condenação. Crime imprescritível e inafiançável só no papel. O mito permanece.

A Lei Afonso Arinos, a primeira que proíbe a discriminação racial, ao ser aprovada não estabeleceu qualquer condenação ou pena pelo crime!  Foram precisos mais de 30 anos para que ela ganhasse uma nova redação, um novo número e nome: apelidada Lei Caó, de contravenção penal. E só quatro anos depois, em 1989, ao ganhar o nº 7.716, o racismo torna-se crime inafiançável e imprescritível, com penas de um a três anos de reclusão.

Século XXI

E, nestas condições, negros e negras brasileiros seguem registrando, década após década, sua história de luta, de conquistas a forceps cumpridas com deficiência, às migalhas, e chegam ao século XXI – do ponto de vista legal – sem direito a educação, respeito e liberdade.

É verdade que, em 2001, na África do Sul, durante a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia, promovida pela Organização das Nações Unidas, discutiu-se a compensação para o continente africano pelo comércio de escravos negros pelas nações que colonizaram o Novo Mundo entre os séculos XV e XIX e o Estado reconheceu a necessidade de políticas de reparação e ações afirmativas. Mas, como já escrevemos, o papel aceita tudo. No Brasil, embora sejamos a maioria da população, nós, negros e negras, somos ainda hoje referidos como “minoria”!

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Reparação a conta-gotas

Dois anos depois da Conferência, um “lampejo” de reparação: a Lei 10.639, de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para inclusão obrigatória da História e Cultura Africana e Afrobrasileira no currículo oficial da rede de ensino. Mas, na prática, nada, ainda.

A Lei 10.639 – um marco na luta antirracista no Brasil e de transformação da política educacional e social brasileira -, passados 17 anos, não é efetivamente cumprida. O ensino continua eurocêntrico, negando o papel fundamental do continente africano para o Brasil e para o mundo, berço da humanidade, fonte abundante de riqueza  naturais e de recursos humanos, de história milenar, cultura riquíssima, complexa e diversa.

O Brasil dos colonizadores europeus foi construído pela mão-de-obra negra qualificada nas lavouras e nos garimpos. A África foi a solução para todos os problemas europeus de falta de gente para as embarcações, para povoar e trabalhar nos lugares “descobertos”, para garantir a alimentação de todos…

Não contar esta história nos deixa sem referências negras nas ciências, nas artes, na política, na academia… Não contar esta história deixa brasileiros e brasileiras sem as verdadeiras referências de formação do povo. E isso faz parte da estratégia de não compartilhamento de poder.

A primeira Política de Saúde da População Negra no Sistema Único de Saúde – SUS, elaborada em 2009, também e ainda, carece ser implementadaas mulheres negras permanecem sendo as maiores vítimas da violência obstétrica, sem direito a anestesia!

O Estatuto da Igualdade Racial,  Lei nº 12.288, de 2010, é comparável a uma obra de ficção! No papel, o estatuto se destina a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Só no papel…

Avançamos na elaboração das leis, mas a implementação…

Lei de Cotas

De todas, a revolução silenciosa perceptível é a da Lei 12.711, de 2012, a Lei de Cotas para estudantes negros nas universidades.

Em 1997, apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos que se declararam negros havia frequentado uma universidade, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. Em 2020, somos 35,8%.

Foram precisos mais de 20 anos para assistirmos a implantação de uma política de ação afirmativa – para a correção de uma injustiça histórica – surtir algum efeito.

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi a primeira do país a criar um sistema de cotas para estudantes negros por meio de uma legislação estadual. Isso no início deste século. Vale lembrar a lei do boi, cota para alunos brancos, de 1968!

Depois, foi a vez da Universidade de Brasília implantar uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular de 2004. Atualmente, praticamente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para o sistema de cotas em seus processos seletivos.

A resolver, ainda, entre outros pontos, a questão dos privilegiados brancos que  roubam vagas, mentindo em sua autodeclaração racial. Expediente utilizado também por mais de 40 mil candidatos às eleições deste ano, que mudaram a cor da pele. E, ainda, por um terço de famílias das classes A e B que solicitou auxílio emergencial.

Código Penal

Dois anos após a assinatura da lei áurea, em 1890, foi promulgado o primeiro código penal brasileiro, criminalizando o existir negro. Mais de 100 anos depois, o senador Paulo Paim (PT–RS) ainda se esforça para aprovar uma lei que atue a favor dfo povo preto no mesmo código.

Em agosto de 2020, em pronunciamento no Senado, o parlamentar chamou atenção para a importância de o Congresso Nacional pautar projetos de combate ao racismo e à discriminação. Aí, fica a pergunta: por que não usar a mesma celeridade do século XIX que, pela lei, tirou negros e negras dos grilhões e colocou-os atrás das grades?

Um de seus projetos, o de nº 787, de 2015, prevê o agravamento da pena quando o crime for motivado por discriminação ou preconceito de raça – o que resultaria em penas mais severas para os crimes de lesão corporal e homicídio, quando estes resultarem de ódio e preconceito racial. E, um outro, equipara a pena de injúria racial à pena de crime de racismo.

“É preciso dar um basta em tudo isso. Os Poderes e a sociedade não podem mais fechar os olhos diante de tamanha crueldade. Todos têm as suas responsabilidades”, acusa Paulo Paim.

Como exemplo do desejo de nos manter à sombra da servidão, só em 2017 aconteceu a formalização do trabalho doméstico com a Lei 13.467! E seu cumprimento ainda é um desafio.

Maré negra

Está claro que não bastam leis. É preciso vontade política para fazê-las cumprir.

“Nossa pauta é múltipla – não disputamos nichos, disputamos espaço na sociedade. Raça não é identidade. Raça não é recorte. Raça é fundamento. Nossa presença implica a perda de poderes do outro. É urgente na luta antirracista a concessão de espaço”, insiste a socióloga Vilma Reis, da militância negra de Salvador (BA), cidade mais negra do Brasil, que nunca teve uma pessoa negra à frente do Executivo Municipal.

E insistimos nós, dando eco à sua voz: uma sociedade melhor é a que oferece lugar para todos. E não tem sido assim. Nossa sociedade é racista e ainda escravocrata. Que cada um observe a própria atitude.

Nem casa grande nem senzala

Mas voltemos ao mito de democracia racial, que torna mais árdua a luta negra e tem sua raiz no livro Casa Grande e Senzala, publicado em 1933, com a falsa ideia de negros, brancos e índios desfrutando as riquezas do Brasil!!!

Registre-se que Gilberto Freyre, de família rica e tradicional, autor da primeira obra sobre as relações entre senhores e escravizados no Brasil, em nenhum momento utiliza o termo “democracia racial”. O que ele faz, nas páginas de seu livro, é descrever relações amistosas entre brancos, negros e índios baseando-se na miscigenação do povo brasileiro, característica pouco comum em outros países que tiveram pessoas escravizadas de origem africana.

Ele se refere a um sistema de relações de poder do período colonial – que permanece nos dias atuais – onde a mulher negra aparece na base da pirâmide e do rancor que as senhoras, brancas, tinham por essas mulheres escravizadas serem as preferidas, por seus maridos, para a prática sexual.

Resumindo: na visão equivocada de Freyre, os estupros e as relações abusivas dos senhores, tratando as mulheres negras e indígenas como objetos, era indicativo de ausência de preconceito. Na cabeça dele, a mistura provocava o melhoramento racial e o “enriquecimento” genético dos brasileiros!

Vivia-se a ditadura Getúlio Vargas e o autoproclamado presidente torna-se garoto-propaganda da farsa, “vendendo” para o mundo a feijoada como símbolo do Brasil racialmente democrático – o feijão, o negro;  arroz, o branco; a couve, a mata e o índio; a laranja, o ouro.

E esta “estratégia de marketing” rende frutos até hoje e faz parte das contradições do Brasil que adora dizer que odeia preto, ama pretas na cama, samba, jogadores de futebol, Nossa Senhora Aparecida…

E esta democracia racial se presta, também, a nos fazer sentir naturalmente inferiores, pois vivemos num mundo sem igualdade nem equidade, permanecendo, a maioria, nas favelas, nos presídios, vivendo nas ruas… 

Uma história branco-europeia

O Brasil foi o último grande país ocidental a extinguir a escravidão. E – como a maioria dos outros países – não criou um sistema de políticas públicas para inserir os escravos libertos e seus descendentes na sociedade.

Sem emprego, sem moradia digna e sem condições básicas de sobrevivência, o fim do século XIX e a primeira metade do século XX do Brasil foram marcados pela miséria e sua resultante violência entre a população negra e marginalizada.

Os recém-libertos foram habitar os locais onde ninguém queria morar, como os morros, na costa da região sudeste, formando as favelas.

Este é o ponto de partida para se compreender o sistema que perdura até hoje de invisibilidade do povo preto no que diz respeito a direitos.

Não tem a ver com inferioridade biológica, com incompetência, incapacidade intelectual, vagabundagem, preguiça, tem a ver com a ignorância do branco, a arrogância branca, o orgulho branco, a vaidade branca, inveja branca, tudo na base do racismo, no sustentar a insustentável mentira de ser superior.

O genocídio da população indígena, com a invasão de suas terras e desmembramento de suas aldeias, que acontece até hoje, faz parte dessas ações sistêmicas que promovem e sustentam a exclusão racial em nosso país.

Racismo é uma problemática branca. Não foi criado por nós. É fundamental que as pessoas brancas cobrem atitudes, entendam seu lugar social, em especial nos espaços onde não estamos presentes. Não basta só reconhecer o privilégio. É preciso agir”, propõe a filósofa Djamila Ribeiro.

E registre-se, ainda, a negação de nossa origem dentro do continente africano. Outra estratégia típica de quem não consegue ir além dó próprio umbigo.

Diante da possibilidade de libertar os escravizados, do medo de ter de enfrentar pedidos de indenização por perdas e danos – como fizeram os franceses obrigando os escravizados no Haiti a os indenizarem por terem reconquistado a própria liberdade -, o abolicionista Rui Barbosa queima toda a documentação fazendária para evitar que os escravocratas pleiteassem indenização do Estado, quando ministro da Fazenda, em 1889.

Sem vergonha

O geógrafo Milton Santos, certa vez, em entrevista à rede BBC, contou que teve “a sorte de ser negro em pelo menos quatro continentes (…) e em cada um desses é diferente ser negro e é diferente ser negro no Brasil! (…) Aqui, de um modo geral, ninguém têm vergonha de ser racista, mas tem vergonha de dizer que é racista…”

Este jeito racista de ser brasileiro – comentou Milton Santos – sempre comprometeu a análise da co-existência nacional. “Não é o olhar para a África que vai ajudar na produção de uma política brasileira para o negro nem um olhar para os Estados Unidos que vai permitir a produção de uma política. É o estudo do negro dentro da sociedade brasileira”, propunha o geógrafo em sua militância.

Quando o jornalista Roberto D’Avila perguntou a ele sobre o ressentimento dos negros em relação a sociedade branca, Milton Santos respondeu que “são os brancos que têm o ressentimento com relação os negros que conseguem acender socialmente…  Isso porque ressentimento que tem eficácia é de quem tem poder”.

Para ilustrar a observação acima, vale lembrar os comentários recentes do ex-chefe de Fórmula-1, Bernie Ecclestone, sobre a maneira de Lewis Hamilton se vestir, após o britânico ficar perto de bater o recorde do alemão Michael Schumacher e transformar-se no maior piloto de todos os tempos de Fórmula-1.

Poder para o povo preto

dēmokratía, de dêmos ‘povo’ + * kratía ‘força, poder’ 

Me permito criar um novo verbete:

negrocracia, de negro ‘povo’ + *cracia – ‘força, poder’