A cor roubada: o embranquecimento dos negros importantes do Brasil
“Somos enganados desde os livros de escola…
Os antepassados de nossas crianças não ergueram as pirâmides da Núbia, do Egito…
Iemanjá não é uma deusa negra iorubá e, sim, a sereia grega de Ulisses.
Como pode alvorecer um país que insiste em negar-se a si mesmo, sem que haja, com urgência, transgressores em campanha abolicionista para desacorrentar a verdade?
Sugestões para vocêNo Museu do Negro, os aparelhos de tortura, mas onde foram parar a farda de gala de Machado de Assis, a de João Candido, a régua de André Rebouças, a pena de Castro Alves, a batuta de Chiquinha, a bengala de Patrocínio, o colar de Dandara, a obra de Valentin, o barroco do padre José Maurício?…”
Este é um pequeno trecho de uma carta aberta do cantor, compositor e guitarrista Altay Veloso que percorre as redes sociais. E se refere à cor roubada dos negros importantes da história do Brasil.
Nos pintaram de branco!!! E muitos fazem isso, ainda, quando dizem: “Ah, você não é negro…”. Ou nos chamam de “morenos”, entre outras expressões para nos tornar quem não somos.
O advento da máquina fotográfica, da foto preto-e-branco, no século XX, ajudou bastante neste processo. Mas, antes disso, na pintura, na escultura, muito se fez para esconder, se tornar invisível, para se roubar, a cor da nossa pele, a nossa origem, o nosso ponto de partida.
Pioneiros negros
Como lembra Altay Veloso, Iemanjá foi transformada em sereia grega.
Só que ela, como as pioneiras Chiquinha Gonzaga, primeira maestrina a reger uma orquestra e primeira mulher a compor uma música de Carnaval, e Maria Firmina dos Reis, que publicou Úrsula, em 1859, primeira escritora a publicar um romance no Brasil, eram negras.
As mãos que seguraram as penas de Lima Barreto – autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma -, Machado de Assis, um dos mais relevantes literatos da língua portuguesa, e Castro Alves, eram negras também.
Negras, ainda, as mãos dos irmãos André, Antonio e José Rebouças (foto), que projetaram e executaram, em 1885, uma das mais ousadas obras de engenharia mundial, a estrada de ferro que liga as cidades de Curitiba a Paranaguá (foto acima). Soma 110 km de extensão, unindo as regiões produtoras do Paraná ao centro-oeste do país.
Quem identifica a negritude de Nilo Peçanha na galeria de fotos de presidentes da República no Palácio do Planalto? Nilo Peçanha assumiu a Presidência com a morte de Afonso Pena em 14 de junho de 1909. E governou até 15 de novembro de 1910.
Nos nossos museus estas histórias não ganham destaque – em muitos, se quer aparecem. Vale expor, sempre, a dor imposta aos negros, a ideia de subalternidade, e não de luta, força, coragem, enfrentamento.
Por isso, temos de falar da guerreira Dandara, de João Candido, almirante negro da Marinha de Guerra do Brasil, líder da Revolta da Chibata, motim contra o açoite sistematizado para punir marinheiros negros em 1910.
Temos, sim, de falar de todas as formas de luta que nós negros lançamos mão, diuturnamente, para existir, o que inclui reverenciar o engenheiro Teodoro Sampaio, presente na fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). E honrar, também, o multi-instrumentista padre José Maurício, famoso por sua produção de música sacra; o jornalista e farmacêutico José do Patrocínio, e o pintor, escultor e professor Rubem Valentim e arte negra.
Ver e ser visto
Representatividade importa. Importa muito. Nos faz entrar em contato com nossas possibilidades, para além dos esportes e da música, áreas que exemplificam à exaustão toda a nossa potência.
Como todo ser humano integral, nós, negros e negras, podemos tudo. E repetimos esta verdade, exaustivamente, a nossas crianças, aos nossos jovens, adultos, contemporâneos. Remamos todo o tempo contra a maré.
Caras pretas
Muita conversa, diálogo, debate, luta, protesto, marchas, passeatas foram necessárias para redirecionar a câmera nos anúncios midiáticos – uma lei obrigou a inclusão. Mas as lentes não estão bem ajustadas, ainda.
A população negra brasileira é maior que a população branca, mesmo assim, a presença de pretos e pretas nos comerciais de tv, nas fotos de jornais, revistas, nos sites, vídeos, tem espaços predeterminados, quase sempre.
De qualquer modo, é importante termos consciência que se, hoje, em todas as peças publicitárias se encontra no mínimo uma pessoa de pele preta, o movimento negro é que assina esta conquista.
Na época, teve publicitário indignado esbravejando: “Negro não consome. Negro não compra fralda descartável. Por isso, não aparece nos anúncios”. Mentira, né?
Século XXI. Continuamos a parte da população menos representada, mas já aprendemos a força de um boicote a empresas racistas, a lojas que não têm funcionários negros, aprendemos a buscar os nossos quando vamos às compras…
Eu, na discriminação positiva, escolho vendedores e vendedoras negras para indicar uma verdade que as grandes corporações já descobriram: diversidade faz bem para a economia. É bom comprar maquiagem com quem entende qual a melhor cor para o meu tom de pele, o melhor produto para a textura do meu cabelo, o modelo de roupa que cai bem para as minhas formas físicas…
Ah, sim, e que a comissão da minha compra vá para o meu povo. Todos sabemos que negros e negras ganham menos no cumprimento das mesmas funções!
Trabalho de formiguinha? Sempre.
Sobre caras pretas, vale lembrar que no jornalismo, também, é gritante a ausência de profissionais negros. Existem redações em que o número é zero! Detalhe importante: não queremos nos especializar em cobertura de questões raciais. Estamos aptos a atuar nas editorias de Política, Economia, Saúde, Lazer e com um diferencial bem bacana que é a inclusão especialistas negros no mailing de fontes.
Sem disfarce
Nossa primeira linguagem é a visual, antes de falarmos “papai”, “mamãe”, “gugu-dada”, somos expostos a imagens, cada vez mais e mais e mais. Só que as mídias têm optado por visão muito limitada do que é ser negro, o que chega a ser cruel, à medida, que não respeita nem a infância.
Um exemplo clássico é o da rainha dos que eram “baixinhos” no século passado. Xuxa Meneghel que, por décadas, foi referência para as crianças com os mais variados tons de pele, mas criou um time de assistentes de palco à sua imagem e semelhança, só que com cabelos longos, as chamadas de “paquitas”.
Problema nenhum se as crianças negras, como todas as crianças da época, não sonhassem em ser paquitas, pelo menos, nos eventos escolares. O vídeo Cores e Botas, de Juliana Vicente, retrata bem a dor de ser ridicularizada, descartada, inclusive pelas professoras, por ter a cor errada (?!)
O domingo com Fausto Silva, composto por uma maioria de brancas bailarinas, precisou de 30 anos – o programa está no ar desde 1989 – para incluir um número significativo de negras no seu balé – embora permaneça o desafio conter o racismo do apresentador e da emissora.
Black face
Em 2018, a Rede Globo reeditou uma das maneiras mais racistas de se fazer arte, do início do século passado, com a produção da novela Segundo Sol, rodada na Bahia, com um elenco branco bronzeado, apesar de o estado ter 76% da sua população autodeclarada negra e de existir um cast de atores negros na emissora.
Esta estratégia de dar cor de negro a pessoas brancas foi utilizada em 1915, nos Estados Unidos, no filme considerado um grande marco do cinema por seu preciosismo técnico, intitulado O Nascimento de Uma Nação. A narrativa, glorificando a Ku Klux Klan, optou pelo infame black face, utilizando-se de atores brancos pintados de preto.
Tanto na época de O Nascimento, como de Segundo Sol, a grita foi geral, com uma vantagem para a militância atual: uma ação no Facebook reuniu 53 artistas negros, que já haviam atuado na Globo, em um álbum de fotos intitulado Eu poderia estar na novela Segundo Sol. A ação gerou 19 mil compartilhamentos.
Apropriação indevida
E, sem sair de Salvador, vale refletir sobre o desabafo da youtuber Patrícia Ramos, no seu Um abadá a cada dia, do último 9 de junho: “Tô cansada (…) Por que a cor da cidade de Salvador é Daniela Mercury? Você acha que não tem cantor preto?”
Esta é mais uma apropriação indevida. Duas, na verdade.
O Carnaval – festa negra, de rua, espontânea – ganhou passarela, arquibancada, cordões, artistas, foliões de pele clara com direito a camarote.
Lembro de uma conversa com o pessoal da velha guarda do Rio de Janeiro, que se alegrou com a chegada da outra metade da população brasileira no samba. Eles acreditavam que, assim, acabaria a perseguição e a violência policial contra os blocos de sujos, a capoeiragem, o samba.
Mas o que sobrou? Observem quem está à frente das escolas de sambas, da maioria dos trios elétricos, dos blocos, quem se apropriou da festa nos quatro cantos do país.
É. Nossa cor é escondida, roubada, indevidamente apropriada, desfrutada e segue gerando lucro. Isso é desumano!
Cotas surrupiadas
Conseguimos. As cotas transformaram-se em política pública. Não só para caminharmos para a redução da desigualdade racial, mas como reparação ao mal impingido ao povo preto.
Qual a nossa surpresa?! Nem todo mundo concorda que temos direito a elas, que 350 anos de trabalhos forçados, que lutar na Guerra do Paraguai (em troca de liberdade) foi mamão com açúcar. Tem também quem afirma não ter nada com isso. Afinal, nunca teve escravos!!!
Herança todo mundo quer não é mesmo? Então, assim como nós negros, até hoje, pagamos com a vida por ter tido nossos ancestrais escravizados, os herdeiros de quem nos escravizou devem assumir o ônus por todo privilégio desfrutado.
Aí, a loirinha é aprovada no curso de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pelo sistema de cotas. E ela diz se “considerar parda” e ser de uma família de negros. Pode ser? Pode. Só que não.
Na UFRJ, existem 280 denúncias de possíveis fraudes desde a implantação do sistema de cotas. Segundo a universidade, dos 186 estudantes questionados, apenas 96 foram considerados aptos a ocuparem as vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas.
No curso de Medicina da Unicamp, alunos brancos, em meio de curso, se vangloriavam de ter passado no vestibular valendo-se das cotas. A universidade já desligou nove deles.
Na Universidade Estadual da Bahia, um aluno ruivo entrou no curso de Medicina através das cotas. A USP investiga 41 denúncias e a Unesp expulsou 30 alunos que tiveram as autodeclarações invalidadas.
Atravessar a rua
“Por isso, quando estou andando e vejo um branco vindo na minha direção, eu agarro a minha bolsa e, rapidamente, atravesso a rua. Afinal, eles já nos roubaram tanto!”
Quem explicita a nossa realidade é a artista plástica Érica Malunguinho, a primeira mulher negra trans deputada estadual do estado de São Paulo.
Quando a ouvi dizer isso, ela não tinha sido eleita, ainda. Fazia uma performance no Aparelha Luzia, o quilombo urbano da capital paulista, um espaço cultural e político de resistência negra.
Que ninguém duvide. Representatividade importa. Representatividade importa – muito. Mas nunca será o suficiente para lidar com o racismo que permeia nossas relações econômicas, sociais, jurídicas, educativas, emocionais.
Ecoando a voz de Érica Malunguinho, mais vez: “Não basta não ser racista. É preciso ter atitude antirracista”.