Texto porVictória Silva
Jornalista, Santos

Beleza sem padrões: elas falam sobre o poder de ser quem são

XX ou XY.

De acordo com a biologia, essa é a diferença entre ser homem e ser mulher. Um par de cromossomos. Mas, antes mesmo de uma menina vir ao mundo, no segundo em que a ultrassom indica que uma garotinha está a caminho, ela recebe um manual não solicitado e escrito por um autor desconhecido.

Embora não fisicamente, as cobranças o fazem existir desde o momento em que o furinho na orelha é feito. Normalmente, ainda na maternidade ou dias após a alta.

Segundo esse guia, ser mulher é sinônimo de delicadeza, intuição e empatia. Força, lógica e coragem definem, por excelência, os garotos.

Mas essa não é a única diferença que a ausência do cromossomo Y causa. O mesmo manual diz que mulheres devem se comportar como mocinhas, ou seja, sorrir o tempo todo (mesmo quando estão estressadas ou simplesmente não querem), sentar de pernas cruzadas desde sempre, falar baixo e com voz dócil, evitar palavrões e comer pouco. Também é preciso usar salto alto, roupas que valorizem suas curvas (se exercitar para ter curvas, se acaso for necessário), ter as unhas sempre feitas e sobrancelhas desenhadas.

Além disso tudo, também se espera que elas pintem o rosto com diferentes tipos de maquiagem e usem cremes pra reverter os efeitos do sol e do passar do tempo. Pintar os cabelos. Depilar todas as partes do corpo cirurgicamente. O motivo é sempre o mesmo: para parecer mais nova.

De acordo com Simone Rodrigues Batista, historiadora e professora da São Judas – Unimonte, a imagem do que é feminino é uma construção social que estabelece padrões. Em resumo, funciona como uma construção de estereótipos.

“Sempre cultuamos as mulheres pela forma física. Como consequência, muitas mulheres já estão preocupadas em envelhecer aos 30 anos, quando ainda são jovens. Enquanto homens não têm qualquer preocupação com rugas e cabelos brancos. Quando eles têm algum medo de envelhecer é ligado apenas ao papel social”, explica.

Acontece que para algumas mulheres esses padrões já não fazem mais sentido.

Beleza sem padrões, um grito pela liberdade feminina

Minha vida passou a ser bem melhor

Sonia Maria Santos de Souza faz parte desse grupo.

Nascida em 1955, mesma época em que Marilyn Monroe era considerado ícone de beleza e estilo. A santista assistiu aos diferentes padrões de beleza e até se esforçou para se enquadrar a alguns deles. Entretanto, essa já não é mais sua realidade: há alguns anos, a advogada assumiu os cabelos brancos.

juicysantos.com.br - Beleza sem padrões

“Hoje eu posso dizer que tenho orgulho da minha idade e também dos meus atuais e verdadeiros cabelos prata. Mas, não foi sempre assim. Passeio anos pintado os cabelos de preto. Havia me tornado uma escrava das tinturas, pois era necessário retocar a cada 10 ou 15 dias no máximo. Um horror!”, lembra.

Apesar do orgulho se sente, Sonia também recorda do período de transição como um momento difícil. Primeiramente, o problema foi a autoaceitação – se olhar no espelho não era uma tarefa simples.

Além disso, os comentários de amigos e até da família não ajudavam.

“Ouvi muitas críticas das amigas e até mesmo dos meus  filhos, eles me diziam que eu ia envelhecer. Mas eu pensava que se envelhecer era ter cabelos brancos, eu estava velha e pronto. Por outro lado, esta atitude me trouxe uma nova realidade, uma sensação de sou mais eu”.

De outra geração, Tatiana Branco tem 36 anos e nunca tentou esconder os fios brancos.

Ainda assim, as críticas de terceiros sobre o possível envelhecimento de sua imagem aconteceram. Segundo Tati, os primeiros cabelos brancos surgiram ainda na adolescência, entre os 17 e 18 anos. Nessa época, a confeiteira tinha assumido um visual ruivo e, por isso, pintava os cabelos com frequência. Mas, assim que voltou ao tom natural, deu espaço aos cabelos brancos.

“Conforme eles iam ficando mais evidentes, eu amava cada vez mais. Algumas pessoas diziam que isso estava me envelhecendo ou atribuíam os fios a um desleixo com a minha aparência. Na verdade, acho que fiquei mais bonita e estilosa com os brancos”.

Uma relação de amor

Em ambos os casos, a aceitação da beleza natural resultou em mais amor próprio.

E é exatamente esse o sentimento que Camila Genaro usa para definir o relacionamento que tem com seu corpo: amor. Mas, nem sempre foi assim…

A contadora de histórias passou longos anos tentando ter uma beleza e um corpo que não eram dela e se comparando com outras mulheres, estampadas em capas de revistas ou até mesmo amigas próximas.

“Aos 15 anos, eu comecei a tomar um remédio que não tinha nem rótulo. Era um pote branco com as bolinhas dentro. Emagreci rápido demais. Tão rápido que encantou a minha professora de química, que veio me perguntar o que eu estava tomando e me pediu o remédio para emagrecer também”.

Na verdade, a professora estava preocupada com a saúde da aluna. Por isso, mandou um exemplar das pílulas para um laboratório. O tal remédio era uma mistura de anfetamina e um veneno utilizado para exterminar ratos.

Apesar do susto, Camila seguiu tentando emagrecer. Até que teve a primeira gravidez, que causou um problema hormonal e mais 30 quilos na balança.

“Eu pirei. Simplesmente pirei. Entrei em depressão e tomei sibutramina, o que me levou a uma quase morte, por conta do aceleramento do meu coração”.

De acordo com ela, o susto a levou a transformar a contação de histórias em seu ofício principal. A partir desse momento, nasceu o amor por ela mesma e seu corpo.

“Foi minha libertação. Por isso, sempre falo que as histórias me deram uma nova vida”.

juicysantos.com.br - Beleza sem padrõesImagem: Acervo pessoal

Quem rola o feed da Preta Rara no Instagram nem imagina. Mas, assim como Camila, ela também teve seu momento de libertação. O relacionamento com sua imagem também não é uma história de amor à primeira vista. Pelo contrário, assim como a maioria das mulheres, a rapper e historiadora passou anos com vergonha de seu corpo e aparência.

A gente perde muito tempo

A história se repete mais uma vez. Afinal, o manual do que é feminino e bonito vai para todas as mulheres.

Segundo Larissa Gandolfo, pedagoga, mestre em Filosofia da Educação e também uma das criadoras da Oficina de Desprincesamento (junto com Mariana Desimone) no Brasil, há a percepção de que “o ético é estético”. 

Em palestra no Sesc Santos no mês da mulher, Larissa explicou que, quando uma menina faz um desenho ou se comporta bem, falamos “Ai, que linda”, relacionando o bom ao bonito. E quando uma criança comete um erro ou faz algo fora do esperado, dizemos “Ai, que feio”. Assim, os padrões acabam se misturando.

Exatamente o que aconteceu com todas as mulheres desta matéria.

“Durante toda a minha adolescência eu tive dificuldades de me aceitar. Eu me preocupava com a aceitação das pessoas a meu respeito e não com a minha própria aceitação, saca?”.

juicysantos.com.br - Beleza sem padrões

Nascida em Santos, ela se lembra das idas à praia sempre de shorts e blusão. O fato mudou apenas após o casamento, quando Ricardo – seu companheiro na época e um dos melhores amigos nos dias atuais – começou a incentivá-la a aceitar seu corpo e entender que ele era apenas um corpo, como qualquer outro.

Somado a isso, Preta também passou anos em guerra com os cabelos crespos. Os alisamentos começaram ainda nova e tiveram todos os tipos de química como base. Mas, diferentemente da luta contra o corpo, essa batalha terminou mais cedo: aos 15 anos.

“Atualmente, eu falo muito sobre isso na internet, para ajudar outras mulheres também. Eu sempre pergunto quanto tempo elas estão dispostas a perder se odiando. Quanto tempo vão gastar esperando um corpo ideal para poderem viver”.

Segundo a socióloga Dra. Giselle Soares, a quebra dos padrões que Sonia, Tatiana, Camila, Preta Rara e tantas outras mulheres estão enfrentando para ser quem são é um processo de encontro do coletivo com o individual. Isso porque, quando individualmente nos vemos dentro de um determinado movimento do qual outras mulheres estão participando, nasce o desejo de fazer parte dele.

Elas e outras mulheres seguem a luta por uma beleza sem padrões. E, enquanto as capas de revista ainda ilustram um padrão de beleza que precisa de tratamento no Photoshop e outros editores de imagem, a pergunta que fica é: esse feminino é de quem e feito para quem? Quanto vale um cromossomo Y?