Maria Valéria Rezende, a costureira da verdade e da imaginação
Aos 59 anos, após uma vida inteira dedicada à educação popular, Maria Valéria Rezende publicou seu primeiro livro. A santista começou em 2001 com Vasto Mundo – título que ganhou tradução para o francês anos depois – e pegou gosto pela brincadeira. Quem lê uma de suas mais de 15 obras publicadas (entre romances, poesias, contos e crônicas e textos infanto-juvenis) não tem dúvidas de que, para ela, escrever é algo prazeroso.
Ela costura as palavras.
Mistura fatos reais e ficção com maestria.
Maria Valéria Rezende, segundo Frei Betto, é uma “revelação em nossas letras que desmente todos aqueles que proclamam a crise da narrativa de ficção”.
Mas, bastam 30 minutos de conversa com a autora caiçara para saber que ela é tudo isso e muito mais. O Juicy Santos, junto com vários fãs, esteve no lançamento de Carta à Rainha Louca, seu livro mais recente, na Livraria Martins Fontes.
Descobrimos quem é Maria Valéria Rezende. Ao menos, quem ela era naquele anoitecer de sexta-feira.
Maria Valéria Rezende é só sorrisos
Nem mesmo a coceira intensa causada pelas lesões da urticaria crônica deixam Maria Valéria Rezendo de mau humor. Aliás, o problema é motivo de risos constantes. Sempre que percebe que alguém está a observando se coçar, ela sorri. E, em seguida, explica o que são as manchas vermelhas em seu corpo. Às vezes, inclusive, alerta em tom descontraído que não se trata de um problema contagioso.
E então abraça quem quer abraços. Conversa com quem tem assunto. Assina seu livro. E, em todos os casos, pede uma opinião ao final da leitura de sua nova obra.
Em resumo, Carta à Rainha Louca (R$ 49,90) é uma obra ficcional baseada em pesquisas realizadas pela autora. O texto nasceu de dois fragmentos dos autos de um processo incompleto, encontrado por ela no Arquivo Ultramarino de Lisboa. De acordo com esses fragmentos, uma mulher teria fundado um convento clandestino em Minas Gerais sem ordem da Coroa Portuguesa.
“Qualquer morcego tem um radar que faz ele voar no escuro sem dar com a cara em nada. Todo pato tem uma bússola na ponta do nariz que indica o caminho. E nós temos uma coisa de imaginar a realidade e, depois, para dar sentido, a gente costura com a nossa imaginação como se fosse uma colcha de retalhos. A nossa imaginação é o crochê”.
Essas são as palavras utilizadas pela autora para explicar o processo criativo do título, seu livro mais novo e também o que mais demandou tempo. No total, foram cerca de 30 anos de pesquisas.
Uma autora em busca de histórias para contar
Enquanto escrevia Carta à rainha Louca a autora lançou todos os seus livros.
Em 2016, Quarenta Dias mostrou que ela está em busca de histórias para contar. Afinal, o título narra a história de uma mulher que vaga pelas ruas de Porto Alegre. E, para escrever o texto com a realidade necessária, a santista dormiu e perambulou pelas ruas da cidade por 15 dias.
“Em uma das praças, tinha uma árvore muito confortável. As raízes dela formavam uma cama. Você senta ali e praticamente está deitado. Então eu ia para lá e dormia. Durante o dia, abordava as pessoas com o argumento que criei para a personagem. Eu precisava entender a cidade para que ela pudesse ser o cenário da história”.
A experiência deu certo. Aliás, o sucesso foi tão grande que o livro rendeu à ela o Prêmio Jabuti de melhor romance. Em 2017, foi novamente finalista da premiação, com Outros Cantos.
E, se depender de sua vontade de contar histórias, outros prêmios devem se juntar à coleção. Aliás, ela já tem ideias para o novo livro. E, entre um autógrafo e outro, ouviu histórias dos fãs que podem até compor a narrativa. De acordo com ela, a ideia é falar sobre as famílias e seus segredos escondidos ou esquecidos.
Maria Valéria é freira e feminista
Também durante o evento, a autora matou a saudade de duas amigas do tempo de convento. Sim, Maria Valéria Rezende é freira.
“Mas também sou feminista”, lembra enquanto se levanta para abraçar as irmãs.
Apesar disso soar estranho, Val (como é carinhosamente chamada) garante que não é bem assim. De acordo com ela, são comuns perguntas a respeito e sua resposta sempre vem em tom de provocação. “De qual igreja você está falando: do conjunto dos padres e bispos ou das comunidades que têm fé e buscam viver isso?”
“Algumas pessoas esquecem de uma passagem em que os fariseus trazem uma mulher adúltera para ser apedrejada e Jesus pede para quem não tem nenhum pecado atirar a primeira pedra. Em outro momento, uma mulher que era prostituta se aproxima de Jesus, as pessoas querem afastar e o discurso Dele é que são todos hipócritas”.
Ainda segundo ela, existem variações dentro da religiosidade. Ela apenas escolheu viver com a que dá liberdade.
Maria Valéria Rezende também é santista e apaixonada por arte
Aliás, vale dizer, que foi em uma escola de freiras em Santos que ela teve o primeiro contato com a religião. Também foi por aqui que conheceu a literatura. Sobrinha-neta de Vicente de Carvalho, a autora viveu por aqui até os 18 anos, em uma casa na qual a literatura era lei.
“Eu não queria ter nascido nenhum dia antes ou depois ou em qualquer outra cidade. Santos nos anos 40 e 50, que foi quando eu vivi aqui, era uma cidade que tinha gente do mundo inteiro. Vivíamos uma movimentação cultural fantástica. Em julho, por exemplo tínhamos o Campeonato Aberto de Tênis que era o mais importante do país. Sem falar no festival de teatro da Pagu e vários outros eventos incríveis”.
Apesar de não viver mais por aqui, o amor por Santos ainda existe. Prova disso é que o território está em Carta à Rainha Louca.
Mas o Juicy Santos revela: é necessário conhecer bem a cidade para identificar os momentos nos quais a terra natal da autora é citada.
E aí, aceita o desafio?