Texto porVictória Silva
Jornalista, Santos

Pão de cará em Santos, maior e mais deliciosa mentira das suas manhãs

Leonor*, uma senhora que vive em Santos há décadas, chega à Panificadora Cristo Redentor sempre no mesmo horário, por volta das 8 horas.

“Bom dia”, sussurra sempre que cruza com outros clientes no caminho até o balcão. Quando o próximo é chamado, ela sorri e faz o pedido habitual.

Mas, na última semana, a senhora prolongou o assunto ao perguntar se poderia deixar uma encomenda para dali a alguns dias: 50 pães de cará. De acordo com o que contou, seriam levados para a família que vive em Portugal.

“Todos amam o nosso pãozinho. Não tem igual em nenhum outro lugar do mundo”.

Assim como os familiares da simpática senhora, há muitas pessoas que amam um pãozinho de cará – seja para começar o dia ou acompanhar uma xícara de café no final da tarde.

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Só na Cristo Redentor, por exemplo, são feitas, em média, 1.000 unidades todas as manhãs. Mas, de acordo com a gerência da panificadora, o número chega a dobrar durante os feriados e na temporada.

No entanto, o que boa parte dos fãs do pão de cará em Santos não sabe é que o cará se restringe apenas ao nome. Já que o tubérculo não está presente na lista de ingredientes da receita. E isso não é uma pegadinha de 1º de abril. Pelo contrário, é o fim de uma mentira que talvez tenha feito parte das suas manhãs por anos.

A história e a “mentira” do pão de cará em Santos

Pão de cará sem cará

Primeiramente, vamos a uma explicação. Há quem compre o pão de cará em Santos diariamente e nem saiba exatamente o que é cará. Em resumo, trata-se de um tubérculo mega parecido com o inhame. Segundo profissionais da nutrição, é como se as raízes fossem primas muito próximas. Ambas são ricas em carboidratos e fornecem bastante energia aos consumidores.

Contudo, os pães de cará em Santos são feitos a partir de uma mistura de farinha, açúcar, margarina, fermento, água e componentes emulsificantes e melhoradores. Além disso, para finalizar, a massa leva uma pincelada de ovo para que adquira aquela cobertura dourada e levemente crocante.

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E é aqui que nasce a questão: então porque nós chamamos de pão de cará? Neste caso, ele é um pão de leite?

Justificativas da mentira do pão de cará em Santos

Para chegar a uma conclusão, o Juicy Santos conversou com Maria de Fátima Duarte Gonçalves, coordenadora do curso de Gastronomia da São Judas – Campus Unimonte e também professora de pães. Além disso, também buscamos a opinião do José Carlos Menezes, mais conhecido como Carlão, que trabalha como padeiro há décadas.

Descobrimos duas possibilidades para a existência do pão de cará em Santos.

A versão do Carlão se tornou popular pelas padarias de Santos e de toda a Baixada Santista. Segundo ele, os pães teriam deixado de ter o cará na receita há, em média, trinta anos. O motivo da exclusão do ingrediente teria sido a praticidade. Já que a versão sem cará leva, em média, 2 horas para ficar pronta e, antes disso, o preparo tinha outros passos, tais como descascar e cozinhar o tubérculo, o que demandava ainda mais tempo.

Atualmente, o Carlão chega à padaria às 3 horas da manhã para garantir os pães quentinhos a partir das 6 horas. Imagine só a que horas ele teria que acordar se com toda essa trabalheira?

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A versão parece boa, mas não tem nada de similar com a da professora Maria de Fátima. Segundo a docente nos contou, não existem registros históricos que comprovem a presença do cará na receita do pão – seja em livros, receitas dos mais antigos ou documentos da cidade. Nada. Por isso, ela levanta a possibilidade de o pão de cará em Santos nunca ter tido o cará de fato.

“Eu já fiz muitas pesquisas, até comprei um livro com o título Pão de Cará esperando encontrar a história dessa iguaria santista. Mas não há nenhum registro histórico. Minha crença é que seja apenas um costume popular. Talvez o nome tenha nascido da aparência da casquinha do pão com a do tubérculo, por exemplo. Infelizmente, não consigo afirmar nada com 100% de certeza”.

Ela ainda questiona se seria possível encontrar plantações de cará em solos santistas.

Pão de cará versus pão de leite

Apesar das dúvidas levantadas, Maria de Fátima é enfática ao dizer: o pão de cará em Santos não é um pão de leite comum. Até porque, em muitas padarias da cidade, dá para encontrar ambos. E os sabores são diferentes.

“Acredito que a quantidade de sal e alguns outros ingredientes diferenciem o pão do cará do pão de leite. As texturas são muito parecidas, mas o sabor tem um nuance bem interessante. Então, posso dizer que pão de leite e pão de cará definitivamente não são a mesma coisa”.

A afirmação faz todo sentido. Afinal, Leonor não é a única que compra os pães feitos em Santos para a família. E nem sempre as encomendas são para o exterior. Existem casos nos quais eles são levados para a capital paulista, interior de São Paulo ou outros estados próximos. Antes que você se questione sobre o motivo de padarias de outras regiões não desenvolverem a receita, existe uma alternativa: a treta do pão de cará.

Em outras palavras, estamos falando do problema que a maioria dos consumidores têm com os pães do canto. Afinal, o do meio é mais gostoso, né? E, por isso, tem gente que se nega a levar o das pontas. As padarias têm dois caminhos a seguir: aceitar o problema ou então comprar a briga. Na Panificadora Vila Belmiro de Santos, por exemplo, a solução foi usar a lógica: comprou mais de dois pães, leva o da ponta. Tudo para respeitar os múltiplos de três. O aviso até virou meme no Viver em Santos.

“Eu acredito que essa exigência dos clientes com o pão faça ele se manter algo regional. Além disso, também tem o fato de o cará ser muito sensível por conta da umidade. Se ele não for vendido rapidamente resseca. Já o pão francês mantém o sabor e consistência por mais tempo”, comenta o gerente da Cristo Redentor, Leandro.

Qual seria o sabor do pão verdadeiramente de cará?

Depois de descobrir essa mentira, deu até vontade de saber qual seria o sabor de um pão verdadeiramente feito com cará, né?

O chef Dário Costa, do Madê Cozinha Autoral, tem essa resposta. Logo que abriu as portas, o menu do Madê apresentou ao público um sanduba de camarões feito com pão de cará rústico preparado na casa. Fez tanto sucesso que, conforme disponibilidade dos produtos, o prato volta ao restaurante.

“Praticamente todo o nosso cardápio é pensado com base em referências. Ou seja, os pratos têm um apego sentimental e remetem a um bom momento da minha vida. E, sem dúvida, o pão de cará fez parte da minha infância, como da de muitos santistas”, lembra.

Ainda de acordo com ele, antes de elaborar sua receita, rolaram muitas pesquisas. Mas, assim como a professora Maria de Fátima, ele não achou nada que comprovasse que o pão era feito com a raiz. Apesar disso, a ideia de criar o pão continuou.

Costa fez várias tentativas e incontáveis testes na cozinha. Isso porque foi preciso descobrir, por exemplo, a quantidade de cará adequada para a massa do pão.

“Quando usava 100% de cará, o pão ficava duro. Foi então que comecei a diluir a percentagem de tubérculos, dividir entre batata e cará. Porque o cará é um inhame, bem rígido. E diversas vezes o pão não ficava com uma consistência legal. Até que eu encontrei um inhame roxo, muito usado pelos asiáticos, que é menos massudo que o cará tradicional. Depois de muitos testes, conseguimos chegar na receita ideal”.

A receita preparada pelo chef não é a mesma daquelas apresentadas na padaria. Afinal, além de ter o cará entre os ingredientes, também é um pão de fermentação natural.

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A receita do pão de cará do chef Dário Costa

Ficou com água na boca? Atualmente, o pão de cará não está disponível no cardápio do Madê, ou seja, você vai precisar esperar ou então pode ir para a cozinha. Isso porque Dário dividiu a receita do pão com a gente.

Para fazer o verdadeiro pão de cará, você vai precisar de:

  • 700 gramas de farinha de trigo
  • 175 gramas de inhame roxo cozido
  • 175 gramas de batata cozida
  • 350 gramas de levain (fermento natural)
  • 15 gramas de sal
  • 100 gramas de água
  • 200 gramas de açúcar
  • 80 gramas de farinha manteiga
  • 1 de ovo de galinha caipira para pincelar

De acordo com ele, o preparo é esse:

Primeiramente, coloque todos os ingredientes (com exceção do sal e da água) em uma batedeira planetária. Bata os ingredientes e vá adicionando metade da quantidade de água.

Dica: se acaso você não tiver uma batedeira, pode ser feito com as mãos também.

Em seguida, acrescente o sal e volte a bater, acrescentando aos poucos o restante da água. Quando a massa estiver bem homogênea, retire-a da batedeira e deixe descansar até dobrar de tamanho. Quando isso ocorrer, porcione a massa em pães de 80 gramas e deixe descansar até dobrar de tamanho novamente. Depois que os pães cresceram, faça pequenos cortes na superfície e pincele com o ovo batido e polvilhe com um pouco de farinha. Coloque-os em uma forma untada com farinha e leve ao forno pré-aquecido a 180 graus por 20 minutos até assarem.

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A receita rende 22 pães.

Se você não tiver a habilidade necessária para o preparo, vale continuar se deliciando com o tradicional pão de cará em Santos e ficar esperto para saber qual é a próxima vez que o Madê terá o pão verdadeiramente feito com cará.

Afinal, vamos combinar, com cará ou sem cará, o pãozinho da padaria é uma delícia. Não à toa eles atravessaram o oceano para chegar a um café da tarde em Portugal.

* nome fictício, pois a reportagem não conseguiu encontrar a senhora em questão