Almas caladas em um luto pandêmico: como viver em um universo fúnebre
Mais de 429 mil pessoas morreram de COVID-19 no Brasil.
De acordo com uma projeção feita pelo Instituto Para Métricas de Saúde e Avaliação (IHME), da Universidade de Washington, a estimativa é que este número dobre até setembro.
Podemos chegar a 973 mil mortos no país.
Até o momento que você lê essa matéria, a marca de 1580 vidas perdidas já foi ultrapassada em Santos. Elisabeth Consolo é médica infectologista e trabalha na linha de frente do enfrentamento à Covid-19. Há mais de um ano, ela está tanto no início quanto no final de muitas dessas histórias. Apesar dos anos lidando com a morte, ela diz que não existe aula na faculdade ou experiência na profissão que prepare para essa realidade.
A sensação é de um luto permanente
Em seu olhar, a cada vez que o coronavírus ganha uma batalha uma vida segue sem o seu grande amor. Não é simples encarar quem fica e oficializar o fim.
“Quando a gente escolhe a medicina, já sabe que a morte será uma parte da rotina. Com o passar dos anos, ficamos mais preparados. Na pandemia isso caiu por terra. É destruidor”.
Se de um lado a sensação é destruidora, do outro a situação é pouco diferente. Aline Beselga perdeu um amigo, o pai, a avó e uma tia durante a pandemia. Para ela, a parte mais dolorida é que a Covid-19 tira a vida e também a oportunidade de uma despedida.
Essa impossibilidade, inclusive, pode deixar o processo de luto mais difícil.
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Quem nos explica é a psicanalista Luiza Canato. De acordo com ela, o luto é um trabalho elaborativo, psíquico, e muito pessoal. O que significa que não existe um padrão de tempo que deve durar ou como deve ser vivido. Ainda assim, as etapas são as mesmas em todos os casos:
- Negação;
- Raiva;
- Culpa;
- Depressão;
- Aceitação.
Acontece que desde que a pandemia começou, a despedida deixou de ser uma verdade. Para além disso, na maioria dos casos a família fica sem contato com o ente querido por dias. Às vezes semanas. O que faz a negação ser maior.
E, consecutivamente, alguns casos se tornam mais sérios
Aline, por exemplo, ficou dias sem comer.
“Foi um abalo, pois não esperava. Estava com fé que eles poderiam receber a cura”, conta.
Sua xará, Aline Oliveira, perdeu uma tia para o coronavírus e descreve o momento da notícia como um choque. Assim como muitas histórias que você, provavelmente, ouviu, antes de morrer sua tia teve melhoras e a família já contava com o momento de buscá-la no hospital.
Em ambos os casos, o sofrimento foi grande, mas elas conseguiram seguir com a vida. O que nem sempre acontece. Isabel Alves perdeu um filho. Para ela, o sentimento é que uma parte sua foi embora. Não tem um dia que não lembre do filho e chore por saber que nunca mais o verá.
Em outras palavras, ela simplesmente não conseguia sair da primeira fase.
“Para ser saudável, o processo de luto deve coexistir com as nossas atividades diárias. Quando passamos a deixar de fazer coisas básicas ou importantes e o luto se torna o único aspecto significativo da nossa vida, é importante buscar ajuda”, explica a psicanalista.
A mãe de Gabriel ainda não superou, mas conta que busca viver um dia depois do outro.
Num universo fúnebre, é ainda mais difícil
Para seguir em frente, Isabel deixou de assistir o jornal no horário do almoço e não entra no quarto de Gabriel. Além disso, ela tem procurado novos hobbys e começou a fazer terapia.
“Ouvir notícias sobre a pandemia é sempre como dar dois passos para trás”, conta.
Essa sensação, aliás, é sentida também por quem não perdeu ninguém próximo na pandemia. A sensação de luto, ou seja, de perda, também pode estar associada a vida que estamos deixando de viver ao ficar em casa ou ao simples fato de termos que lidar com a morte dia após dia. A gente sempre soube que morrer era parte da vida, mas no último ano essa parte ganhou mais manchetes do que nunca. O medo de morrer também passou a ser realidade para muita gente.
Douglas Martins tem 26 anos e conta que nunca teve medo de morrer. Ele, inclusive, costumava fazer piadas sobre o tempo todo. Em 2020, perdeu um amigo para o Covid-19. Para além da tristeza, passou a ter medo de morrer. Mas, segundo ele, não é um medo normal.
“Eu fiquei realmente paranoico. Tripliquei os cuidados aqui em casa e mesmo sem qualquer sintoma tinha dias que ia dormir com medo de morrer. Cheguei a deixar a porta aberta e avisar o porteiro”, comenta.
Em um grau diferente, Rosangela Bonano conta que também desenvolveu um medo que jamais sentiu na vida. De acordo com ela, a sensação é de muita angústia e a cada notícia isso só aumenta.
Pode parecer que não, mas vai passar
Para casos como esses, Luiza Canado cita o texto ‘A Transitoriedade’, de Freud. No qual, em resumo, ele – que viveu duas guerras e uma pandemia – escreve sobre a importância de que compreendamos que tudo é transitório.
“Encararmos a realidade dos fatos não é uma tarefa simples. Exige muita força interna. E, apesar disso, ainda é possível que, às vezes, a gente senta ansiedade, tristeza ou até mesmo depressão”, comenta.
Depois de um ano e quatro meses dando resultados de testes de Covid, é realmente difícil para a Elisabeth ter essa dimensão. Para quem se mantem informado, também não é nada simples. Mas, essa é a única saída. Para a profissional, o caminho é buscar se fortalecer. Tanto através de ajuda profissional quanto praticando o autocuidado, exercitando o corpo e a mente, mantendo contato com as pessoas e cuidando da alimentação e do sono.