Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP

Notícias de abuso sexual

Eu deveria frequentar as reuniões do Viciados em Notícias Anônimos.

Não consigo passar um dia sem dar uma zapeada nos jornais e me informar sobre os assuntos do momento. Nem falo da vida amorosa dos autointitulados cantores do sertanejo universitário, novos projetos de ex-participantes de reality shows ou postagens de jogadores de futebol em redes sociais.

Me apego a temas e pessoas relevantes, mesmo.

Ser dependente de informações tem a ver com minha formação como jornalista, é claro. Mas, vez ou outra, eu extrapolo. Internamente, crio desculpas esfarrapadas para continuar com a mania de atualização insana. Sigo em frente, com esse estranho autoengano.

E, nos últimos tempos, reparei num crescimento alarmante de notícias de abuso sexual. Quase sempre contra mulheres. No começo, me assustava com o aumento de casos. Sigo assustado. Mas meu lado otimista, em frangalhos, me leva a crer na maior disposição em dar voz às vítimas, em não se calar, em expor cretinos.

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Pisco e volto no tempo. M. e R. me convidaram para uma festa. Suas namoradas pensam que foram ao futebol. Muitas bebidas, drogas, mulheres e quartos reservados para atividades reservadas. Estou no zero a zero. “Vai conversar com a Z.”, me diz M. “Ela tomou todas, aproveita, tá fácil”, completa. Z. não fala coisa com coisa, é incapaz de responder por si própria e pode desmaiar a qualquer momento. Prefiro ir embora. No dia seguinte, M. e R. me chamam de lerdo e fresco no grupo do WhatsApp.

Num país com aversão à leitura, num tempo de burrice orgulhosa, é um esforço repetitivo estabelecer o conceito de abuso sexual. Não sou jurista, nem professor, por isso não me atrevo. Sei que é um guarda-chuva grande, cheio de goteiras, subjetividades e intimidações psicológicas. Em muitos casos, as vítimas não conseguem provar o crime, tornando-se vítimas outra vez.

Me chama atenção o comportamento raivoso do grupo “bandido bom é bandido morto”. Quando a acusação recai sobre um conhecido, de preferência pobre, de preferência sem recursos, e a vítima é uma mulher da família ou bem próxima, pinta a revolta. Pedem punição, sentem-se os Charles Bronson da justiça privatizada.

Ainda na viagem ao passado, estamos no bar. N. comenta sobre suas famosas puladas de cerca. “A vagabunda engravidou”, se indigna. Rindo, comenta que E. exigia o uso de camisinha. Sutilmente, ele a retirava no meio do sexo. Acusou N. de não se cuidar e dar o golpe da barriga. Está bravo, vai gastar uma grana para “tirar” aquela dor de cabeça.

Agora, se o acusado for um famoso, muito rico, um grande ator, um jogador de futebol, a coisa muda. A irracional turminha do “tá com pena? leva pra casa!” se coça e por pouco não leva estupradores ricos e famosos para suas próprias casas. Talvez com vontade de acariciar, deixar no cantinho do pensamento, falar em voz cândida para os bebês sapecas não aprontarem mais. Acumulam-se os “não é bem assim”, repetem-se os “veja bem…”, comentam um “tem que ver direitinho”.

Gente rica e famosa envolvida em casos de abuso sexual pode recorrer às instâncias superiores porque consegue pagar mais que um advogado. Chego a pensar se não jogam dinheiro fora. Brotam advogados dispostos a defendê-los gratuitamente. Sem diploma ou conhecimento de causa, para completar o combo. Pedem provas e comprovações, sem saber se os autos do processo são escritos com U ou L.

De um lado e do outro, juristas de ocasião citam a presunção de inocência negada aos pobres e adversários políticos. Tentam culpar o feminismo até pelas mazelas da lei da gravidade. Acusam militantes, palavra usada em tom pejorativo, de todos os pecados venais e imperdoáveis.

Agora estou no trabalho. Todo mundo viu o A. passando a mão na bunda da constrangida estagiária. Ele tentou disfarçar, mas foi no meio da reunião. Ninguém falou nada. Nos corredores, boatos que a Y. pediu demissão por não aguentar mais as investidas de A., o chefe. Foi mandada embora de um jeito estranho. Era uma das melhores funcionárias.

Não me surpreenderia se descobrisse uma nova religião, pregando a impossibilidade de ricos cometerem crimes, especialmente os de violência sexual. Nos cultos, a pregação garantiria que acusações de abusos sexuais não passam de golpes das invejosas querendo garantir os boletos pagos. Figuras notáveis são superiores e deveriam ser impunes, de acordo com essa crença. Na nova e insana religião, só é pecado o abuso sexual na minha família e na sua. Na dos outros, está perdoado. Entre os mandamentos, o de sempre contratar uma advogada mulher para manipular a opinião pública estaria no topo para chegar ao céu da absolvição do público ignorante.

T. cravou: “é golpe, tá cheio de pistoleira por aí, um cara desse nível, cheio de mulher à disposição, não vai estuprar ninguém, isso é óbvio”. Quando sua filha foi seguida e atacada voltando do trabalho, ele enlouqueceu. Foi atrás de uma arma para “cancelar o CPF do vagabundo”.

Pisco e volto para um presente estranho.

Em dias de crise, procuro um cartãozinho do Viciados em Notícias Anônimos. Passa um tempo, respiro fundo e percebo como é melhor me manter assim, bem-informado e civilizado.