Texto porLudmilla Rossi
Santos

Restaurantes em Santos: o que mora entre fechar as portas e não conseguir atender a alta demanda

Eu cresci ouvindo que “para ter sucesso em Santos precisa ter fila na porta”. Só assim os santistas acreditam que um lugar tem qualidade ou deve ser frequentado. Essa frase é levemente carregada de estereótipos, eu sei. Mas quando a gente cresce ouvindo uma coisa, a gente tende a repetir esse comportamento, a fala ou as duas coisas juntas.

Nesse texto, escrito no pós dia das mães 2020 e na escalada da curva da pandemia, é importante falarmos no fenômeno que acometeu os restaurantes em Santos nos últimos dias.

Como empreendedora bem escaldada por sucessos e fracassos,  sempre me pergunto o que mora entre o fechar as portas e o não conseguir atender a altíssima demanda. Ambas as situações são frutos de crises que moram em lugares opostos: uma pela insuficiência de clientes e a outra pelo excesso deles. Essa resposta não é óbvia e nem tenho a audácia de propor uma fórmula. Mas convido você a pensar comigo e aproveitar o momento de desconstrução social. E a repensar algumas verdades.

No caso dos restaurantes e bares concluo que a experiência, definida para mim pela mistura de qualidade gastronômica, ambiente receptivo e preço – sempre foram os meus direcionais para o consumo. Isso quando eu podia sair de casa.

No momento atual, a conveniência do iFood e do Goomer são pontos importantes, mas essa conveniência logo vira experiência também. Durante a pandemia, descobri alguns restaurantes novos e passei a cozinhar mais em casa, hábito que só tinha aos finais de semana – e olhe lá.

Mudanças repentinas em faturamento e nas margens

Os donos de restaurante que conheço andavam reclamando. Alguns tiveram que se adaptar ao delivery rapidamente. Os que resistiam ao “sócio” iFood não puderam nem pensar duas vezes e viram simultaneamente o faturamento e as margens despencarem.

Se você nunca pensou nisso, saiba que o iFood come (com o perdão do trocadilho) boas margens dos restaurantes em Santos e no Brasil inteiro – em troca da eficiência e conveniência para o consumidor. Justo ou não, eles educaram o mercado. E quem educa o mercado, comanda o mercado.

Bastidores de um restaurante

De verdade, não vi ninguém rir à toa. Alguns restaurantes que operavam só com as ghost kitchens (prática inclusive estimulada pelo iFood e outras plataformas) ficaram menos desconfortáveis, pois suas margens já eram calculadas com base nisso. Os que tinham salões, seguiram com seus custos fixos altos e funcionários, e estão nesse momento tendo que tomar decisões com muita névoa nos olhos.

Foi o caso do restaurante japonês Nagasaki Ya. Eu tinha um vínculo afetivo com o lugar, comemorei vários aniversários lá e o fato de estar sempre ali na região acabava me levando até os tatames ou mesas verdinhas. Hoje recebi a notícia que o restaurante entregou o imóvel. Fiquei triste mas não totalmente surpresa.

O Nagasaki tinha aquela tradição, o restaurante com os donos sempre presentes, os pratos deliciosos e fora do circuito do sushi brazilian style com Catupiry que permeia alguns restaurantes em Santos. Agora o caminho do Nagasaki Ya é operar por uma ghost kitchen na casa da família, inaugurando um novo ciclo.

Vai ser duro não encarar o sorriso doce da Merry nos cumprimentando na entrada. E acho que se a maioria de nós soubesse que era a última vez que estaríamos pisando no ambiente, teríamos feito um pedido diferente. Um King Crab, talvez. Ou um rodízio com muitas caipirinhas (a de kiwi com sakê deles sempre foi uma das minhas favoritas na cidade).

Eu não gosto nem de imaginar a pressão que esses empreendedores passaram nos últimos dias. O último apagar da luz, o último abraço na equipe, o último cliente a ser atendido. Quantas sensações similares não viveremos nos próximos meses, enquanto torcemos para que esses imóveis não sejam ocupados por mais uma rede de farmácias.

Fico lembrando do texto do escritor Anderson França em 2018, descrevendo como foi ser o último cliente da Cantina Capuano, que fechou as portas depois de 111 anos de funcionamento em São Paulo.

O dia das mães da pandemia: o caos nos restaurantes em Santos

Por outro lado, alguns restaurantes da cidade não estavam prontos para o dia das mães. Aqui não faço nenhum julgamento sobre a qualidade da gestão desses empreendedores, afinal eles estão há muitos anos no mercado e tenho certeza que ninguém faz sucesso de graça. Mas foi curioso ver as minhas redes sociais, e as de amigos, repletas de reclamações.

A Janis Nunes encomendou alguns almoços de dia das mães na sexta-feira e conseguiu levar o almoço para sua avó apenas às 17h. Algumas pessoas, pelo que apuramos nos comentários não conseguiram retirar os pedidos ou receber as entregas. Formou-se uma aglomeração na porta do restaurante, contrariando todas as orientações de segurança em saúde.

Aglomeracão na porta do restaurante Van Gogh em SantosFoto por Janis Nunes, em 10 de maio de 2020

Depois da crise ir longe, o restaurante soltou a seguinte nota:

Nota de esclarecimento do Van Gogh, tradicional restaurante em Santos

Acompanhando a imagem, o tradicional restaurante em Santos postou o seguinte comunicado:

Garantimos que iremos continuar trabalhando duro e com total transparência para nos adaptarmos da melhor forma ao momento atual, sempre focados no compromisso de entregar o melhor aos nossos clientes.

O Van Gogh e alguns outros restaurantes alegaram falha no iFood, o que é questionável visto que a Janis, citada acima, não encomendou nada pelo iFood. Mas como mais restaurantes alegaram a mesma falha da plataforma, é possível que isso também tenha acontecido.

Foram honestos ao assumir erros duros e aparentemente oferecerão algum tipo de compensação aos clientes, demonstrando sua boa fé.

Outro restaurante querido pelos santistas, o Babbo Américo, também passou por problemas parecidos, e postaram o seguinte trecho em suas redes sociais,

No Dia das Mães a previsão de movimento é sempre grande, e para isso nos preparamos para atender no delivery e no drive thru. Apesar de termos previsto um movimento acima do normal por causa da pandemia, fomos surpreendidos pela quantidade de pedidos, superando todas as nossas expectativas. O resultado foi que falhamos com muitos de vocês.
Houve um problema com o ifood que infelizmente sobrecarregou nossa cozinha como nunca aconteceu antes. Sentimos muito por todos aqueles que foram prejudicados neste Dia das Mães. Tudo foi preparado com muito carinho mas infelizmente não conseguimos responder todas as mensagens e atender com a atenção que cada um de vocês merece.
Gostaríamos de tentar reparar de alguma forma. Colocamos o nosso email à disposição – [email protected] – e durante a semana retornaremos todas as mensagens.
Aceitem nossas sinceras desculpas.

Esses empreendedores, apesar da alta demanda, também estão passando por crises. Cada um com a sua. A pior coisa para um negócio é ter vales e picos, pois controlar fluxo de caixa com tantos altos e baixos é uma verdadeira aventura. Os restaurantes não conseguiram sequer atender aos telefonemas e não deram conta. E tudo isso num dia em que muitos já estavam sensíveis por não terem conseguido encontrar a família.

O que mora entre esses dois pontos?

Durante muitos sábados eu passei na frente do restaurante Van Gogh. Foi raro não observar uma fila por ali. Você lembra do “para ter sucesso por aqui precisa ter fila na porta”?

Em termos de restaurantes em Santos, parece que o Van Gogh é o marco desse sucesso. Há muitas semanas atrás (já perdi a conta por conta da pandemia, desculpe) fui lá com um casal de amigos. Ficamos esperando por cerca de quarenta minutos para entrar, comportamento que me recuso a exercer. Tem fila? Eu fujo. Os amigos insistiram porque consideram a pizza do Van Gogh a melhor da cidade – e assim aproveitamos aqueles longínquos tempos mais sociáveis.

O Babbo Américo, um restaurante ao qual sou imensamente devota, raramente via minha cara aos finais de semana pela razão da espera. Durante a semana, raramente eu peguei o lugar lotado e passei a decidir minhas idas com base no conforto da não espera.

Já o Nagasaki Ya raramente tinha fila. Quando acontecia, era uma micro espera que não levava minutos. Isso me dava uma alegria imensa e eu sempre amei o local por isso. A sensação de sempre poder ser atendida é um atributo importante pra mim.

De fato o consumidor não tem culpa desse efeito gargalo. A sobrecarga dos restaurantes tradicionais mostra que seguimos o mesmo padrão da pirâmide da riqueza. Você já deve ter ouvido aquela conversa sobre 1% da população mundial concentrar 50% de toda a riqueza do mundo. Quando tomamos as nossas decisões de consumo, especialmente no piloto automático, costumamos repetir esse comportamento, concentrando nossas decisões em quem já tem uma certa estabilidade de mercado, tradição e até fama.

Todos os restaurantes que citei acima são verdadeiros patrimônios da nossa cidade. Marcas que fazem parte das nossas memórias frescas e dos momentos de nostalgia. Que conversam com a nossa formação como seres sociais, afinal qual santista  por volta dos seus 30-50 anos não fez um brinde comendo uma pizza de champignon transbordando de molho rosê?

Esses estabelecimentos conhecidos também merecem nossa empatia nesse momento

Precisamos reduzir nossa fúria pelo não atendimento.

Por outro lado, precisamos pensar sobre quantos pequenos restaurantes, que inauguraram nos últimos 5 anos, passaram o dia das mães com o pior faturamento de suas histórias. Enquanto isso o Van Gogh conta que teve uma “demanda jamais vivenciada nos últimos 25 anos”.

São contrastes onde todos nós perdemos: de um lado empreendedores ameaçados de fechar as portas, de outros consumidores insatisfeitos.

Escolhas que geram impacto

Será que não podemos, como consumidores, aproveitar para repensar esse ciclo e experimentar mais os novos restaurantes aos finais de semana? E deixar aqueles tradicionais, que ocupam nossa memória afetiva e lugar confortável do passado, para pedirmos durante a semana, justo naquele dia que você não vai cozinhar?

Cidades abundantes são feitas de novos ciclos, que fomentam as novas ideias e os novos sabores – e nós podemos fazer isso através das nossas escolhas de consumo.

Se você viu um restaurante novo no Instagram ou no iFood, experimente. Dê feedback. Poste sua nova experiência no Instagram. Ajude a fomentar o novo. E ajude a plantar novos hábitos nos restaurantes tradicionais, que por incrível que pareça também sofrem com “vales” de demanda durante a semana.

Longe de mim romantizar a pandemia como algo goodvibes, mas tá na hora de abrir espaços para repensar os comportamentos. especialmente como a gente consome.

A Nagasaki, a cidade japonesa que batiza a marca do nosso amado restaurante japonês, se reconstruiu depois da Fat Boy ser arremessada e dizimar muitas vidas. Assim como a pandemia, uma bomba despejada sob milhares de civis não possui nenhum lado bom. Mas em meio à tantas tragédias, a cidade se reconstruiu após muitos anos.

O Nagasaki, com nosso apoio também vai passar por essa reconstrução. Acreditamos na família Yamaguchi e no sonho dos empreendedores. O Nagasaki é um restaurante tradicional que volta a ser um novo empreendedor que vai precisar desse nosso novo olhar. Se você quer fazer parte do início dessa reconstrução, os pedidos podem acontecer pelo WhatsApp (13) 97408-2125 e o cardápio está no Instagram.

Encerro esse texto com uma frase do comunicado oficial do restaurante.

“…quem sabe, quando tudo isso passar e conseguirmos pagar todas as dívidas que ficaram, a gente consiga voltar para um local físico”.

O sonho empreendedor muda.

É adiado.

Mas ele segue.