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Santos, a cidade do feldspato dos paralelepípedos

Até o finalzinho dos anos 90, boa parte das ruas de Santos – incluindo os principais corredores de tráfego – era pavimentada com paralelepípedos.

As avenidas dos canais, a Francisco Glicério, a Carvalho de Mendonça, a Euclides da Cunha, a Saldanha da Gama da orla da Ponta da Praia, entre tantas outras, menos movimentadas, não eram revestidas por asfalto, como hoje.

O leito carroçável dessas vias era de pedra.

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Tenho na memória com precisão o ruído que o atrito entre os pneus e os paralelepípedos causava. E os ônibus, como sacolejavam. Portas, janelas, balaústres tremiam, se batiam.

Tenho na memória com precisão também a informação do que eram constituídos os paralelepípedos das ruas santistas: feldspato, o mineral matéria-prima. Uma professora das séries iniciais contou isso para gente. E não era a de Ciências. Era a de Artes. Professora Regina, do Cidade de Santos.

Pois então, antes da virada do milênio a cidade se locomovia por sobre paralelepípedos de feldspato.

Também por essas pedras escorriam as águas das chuvas.  Penetravam por entre uma e outra peça, se embrenhando nos rejuntes. Eram absorvidas pelo solo as águas de março, e de fevereiro, e de julho, do ano inteiro.

As manilhas de drenagem contavam, assim, com essa parceria, no intento de fazer as águas escoarem: a dos paralelepípedos, que tornavam o chão mais permeável.

No final dos anos 90, porém, os gestores que estavam à frente do poder público municipal resolveram que era hora de passar asfalto por cima de tudo. Os carros precisavam andar mais rápido, para que o trânsito fluísse. Os paralelepípedos eram um redutor natural de velocidade.

Houve reações contrárias. De quatro ordens, pelo menos.

Uma, advertindo que aquela Santos dos anos 90 perderia parte de sua identidade. As ruas e avenidas de paralelepípedos eram uma marca, eram a cara da cidade. Os arredores da Vila Belmiro, por exemplo, seriam muito mais históricos, fotogênicos e cenográficos se as pedras de feldspato compusessem a paisagem como antes, não seriam?

Outra frente de críticas abordava a segurança no trânsito. A Francisco Glicério, a Washington Luiz, a Bernardino de Campos, a Siqueira Campos, e assim por diante, se transformariam em pistas de alta velocidade. De fato. Tiveram de vir os radares para tentar impor limites.

Havia um terceira linha que apontava o encarecimento da manutenção. Muito mais barato manter o pavimento de pedra, bem mais resistente, do que o asfalto – este, mais vulnerável, exige correções mais rotineiras. Quando não reparado, dá na buraqueira que está aí.

Um quarto grupo contrário à cobertura dos paralelepípedos pelo asfalto denunciava que o sistema de drenagem de Santos seria prejudicado. A ilha se tornaria mais impermeável. Bem se vê que não deu outra. Em algumas esquinas, qualquer chuvinha hoje faz a água se acumular ao redor de bocas de lobo. Até os anos 90, só em temporais extremos se viam tantos pontos de alagamentos como agora.

Em nome de um pseudo progresso, os paralelepípedos não resistiram. Cobertos, às vezes dão as caras – quando a manta asfáltica se desgasta e lhes abre poros para respirar. E então, diante de tal desgaste, se apresentam, como vestígios a denunciar ideias desgastadas.

*A coluna Santos90, dedicada a resgatar a memória da cidade e da região na década mais divertida do século XX, tem autoria de Wagner de Alcântara Aragão, em colaboração para o Juicy Santos.

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