Caso Klein: o que as acusações contra o fundador das Casas Bahia têm a ver com Santos?
Para quem mora em Santos, passar em frente ao Universo Palace pode evocar várias emoções.
Curiosidade, nostalgia e até uma pontinha de inveja por uma vista que ainda impressiona ao cruzar a esquina da Av. Presidente Wilson com a Rua Cásper Líbero, no José Menino.
Um dos prédios mais icônicos da orla, foi inaugurado em 1973 com a proposta de mudar a paisagem e trazer de volta a época áurea do turismo em Santos, que estava em franca decadência.
Misto de hotel e residência, era um verdadeiro complexo de entretenimento décadas à frente do seu tempo e vendido como o “balneário mais arrojado da América do Sul” pela publicidade na época.
Muitos universos em um
Os sócios-proprietários das 100 suítes de luxo, 12 suítes presidenciais e 372 unidades tinham garagens privativas, um verdadeiro luxo para aqueles tempos. E todos os apartamentos contavam com telefone e ar condicionado em todas as dependências. Para socializar, havia um salão de festas, salões para exposições de arte e convenções, cinema e teatro, restaurante, salão de jogos, pista de patinação no gelo, playground, discoteca para 400 pessoas e biblioteca infantil, 3 piscinas, salão de beleza, boate, ginásio de esportes para adultos e crianças, boliche, jardim tropical, balneário para fisioterapia, serviço de limpeza, lavanderia e arrumação dos apartamentos.
Com o passar dos anos, o edifício se tornou tanto um protagonista como uma testemunha da história e das histórias de Santos.
Em novembro de 1973, por exemplo, personalidades como o Rei Pelé, Jesse Valadão, Hebe Camargo, Vera Gimenez, entre outros nomes das artes, estavam lá para o primeiro Festival de Cinema Brasileiro. O complexo também recebeu etapas do concurso de Miss Brasil e muitos outros eventos sociais importantes.
Em mais de 10 mil metros quadrados de área, o luxo e a luxúria conviviam janela a janela nesse lugar.
Publicidade na revista Manchete (anos 70)
Pink Panther, um sonho hedonístico
O Universo Palace ficou especialmente conhecido entre as décadas de 1970 e 90 por um empreendimento único, localizado nas suas dependências: a boate Pink Panther.
Durante anos foi destaque em todo o país, com espetáculos artísticos com toques eróticos, dublagens de divas da disco music por travestis e até cenas de sexo ao vivo no palco. Reunia, no mesmo recinto, políticos, autoridades militares, jornalistas, celebridades em um sonho hedonístico com vista pro mar.
A gente contou um pouco dessa história no documentário Pink, disponível no YouTube:
Mas o auge do Universo Palace durou por poucos anos. Problemas financeiros, conflitos com os proprietários das unidades hoteleiras e queda nas hospedagens levaram o hotel a fechar as portas no começo dos anos 1990. A Pink Panther durou até 1995.
E você pode saber mais sobre a história da Pink Panther no documentário Pink, curta produzido pela Mokotó Filmes e Histórias.
De hospedagem, as unidades viraram em apartamentos residenciais, tornando o prédio um dos maiores condomínios da região.
Hoje em dia, além de uma rede gigante de academias, lojas se instalaram no local.
O glamour de outrora ficou no passado, levado pelas ondas da praia do José Menino.
Mas, afinal de contas, o que o Universo Palace tem a ver com um dos maiores escândalos sexuais do Brasil, o Caso Klein?
Em abril de 2021, a Agência Pública publicou uma série de reportagens denunciando que o fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, teria mantido uma rede de exploração sexual de meninas e mulheres por mais de 30 anos – sem jamais ser incomodado pela polícia, pela justiça ou pela imprensa. Falecido em 2014, Klein era um ícone do empreendedorismo no Brasil.
Após dezenas de entrevistas com vítimas e ex-funcionários das Casas Bahia e da família Klein que indicam que os abusos aconteciam até dentro da sede da empresa, em São Caetano do Sul (SP), a Pública soltou uma série de matérias sobre essa investigação. E, entre as denúncias, apareceram relatos do esquema na Baixada Santista, nas cidades de Santos, São Vicente e Guarujá.
O Universo Palace era um dos locais escolhidos para o abuso. Não muito longe dali, na Ilha Porchat, outro imóvel tinha a mesma função. No Guarujá, acontecia em uma casa de sua propriedade.
Ler as matérias da Agência Pública sobre o caso Klein é fundamental para entender como toda uma cadeia de conivência acobertou durante anos o abuso sistematizado de meninas e mulheres.
Funcionários da Casas Bahia confirmaram os frequentes pagamentos em dinheiro e produtos às chamadas “samuquetes”, como eram apelidadas as “meninas do Samuel” — depoimentos confirmando a situação constam, inclusive, em condenações na Justiça do Trabalho. Josilene*, que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. Segundo ela, “as meninas tinham direito de escolher o que elas queriam na loja. Na época, como era menina nova, pegava muito celular, som, televisão”.
A reportagem viralizou nas redes sociais, foi elogiada por jornalistas, influenciadores e celebridades, mas não recebeu destaque na TV nem em veículos de alcance nacional.
A investigação do Caso Klein precisa continuar
A Agência Pública é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil. Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a equipe da Pública realiza reportagens com uma apuração rigorosa fundamentada nas bases do jornalismo sério e que defende incondicionalmente os direitos humanos. Ganhou mais de 70 prêmios internacionais de jornalismo e faz um trabalho fundamental para a liberdade de expressão e combate às notícias falsas no país.
Para o caso Klein, a Pública recebeu denúncias, consultou processos judiciais e inquéritos policiais e teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos na própria sede da Casas Bahia e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e em Angra dos Reis (RJ).
Após a publicação da primeira matéria, a Pública abriu um canal de denúncias e várias mulheres tomaram coragem para relatar o que aconteceu com elas, buscando reparação e a prevenção de que isso aconteça com outras. E, por isso, a verdade precisa vir à tona com a responsabilidade e a coragem da Pública.
Precisamos combater a impunidade dos agressores.
E como podemos fazer isso? Ajudando a Pública a mergulhar novamente nessa história para contá-la por completo.
A Pública precisa levantar R$ 90 mil até o dia 31 de agosto de 2023 para retomar as investigações e produzir um podcast investigativo sobre este caso. O investimento será para remunerar repórteres, equipamentos, viagens e advogados, já que existe risco de retaliação.
Você pode fazer sua doação única por pix na chave [email protected] ou virar Aliado da Pública para doar de forma recorrente e receber em primeira mão novidades e bastidores do podcast.
Santos é a cidade mais feminina do Brasil, do ponto de vista proporcional. E porque amamos esse território e sabemos que ele só se tem a ganhar com a igualdade de gêneros, não podemos nos calar quando meninas e mulheres são vítimas de violência sexual perpetuada por décadas e décadas.
Apoie o jornalismo independente da Agência Pública e ajude a desvendar esse caso