1968: o ano em que começou a decadência do Centro de Santos
Há muitas coisas acontecendo no Centro de Santos: novas obras, muitas promessas, grandes eventos voltaram a ocupar as ruas e praças, população apontando para uma grande demanda de repovoamento. Mas por que alguns desses problemas foram formados nessa área da cidade? Por que os eventos tiveram uma pausa e voltaram a acontecer nos últimos meses com tanta força? Por que parece tão difícil que as pessoas voltem a morar no centro? E por que o centro não é mais o ponto focal para o nosso comércio como era antigamente?
Depois de uma longa conversa com o secretário de Desenvolvimento Urbano de Santos, Glaucus Renzo Farinello, a gente te conta um pouco do que vem sendo feito por parte do poder público e o que podemos esperar para esse ano de 2024.
Tudo começou no Centro da cidade…
Santos tem o início de sua urbanização na região central. No entanto, esse processo de expansão passa pela questão portuária e por diversos outros atravessamentos que dizem respeito, por exemplo, à influência de outros modelos de cidades pelo mundo; o diálogo federal, estadual e municipal; as crises internas; e outros pontos que foram modelando o território segundo tais demandas.
Há, ainda, o desenvolvimento social local, quando diferentes modos de vida, que se alteram com o passar dos anos, também ditam o modo como a cidade deveria se comportar.
E mais, o centro de Santos não é um centro geográfico. Isto é, ele fica mais ao norte da sua parte insular. Por si só, exige estratégias diferentes das adotadas em outras partes do mundo. Soma-se a isso a proximidade do centro com a área portuária – zona de impactos socioambientais que, eventualmente, afugenta grande parte dos interesses em residir ou empreender no âmbito da habitação no local.
Nesse contexto, uma dessas crises internas foi a de saneamento. Sabe os famosos canais de Santos? Eles surgiram de maneira a solucionar a coleta de esgoto diante da grande movimentação portuária, com a chegada de muitas pessoas na cidade e os embarques de café no final do século 19. Diferentes epidemias passaram a assolar a região e a Comissão de Saneamento da época viria a implementar, então, um novo plano urbanístico: coletar as águas das chuvas, dos rios e drenar as áreas pantanosas.
O famoso projeto de Saturnino de Brito foi um dos principais impulsionadores do desenvolvimento do Centro de Santos em direção à orla da praia onde, de fato, as pessoas passaram a querer viver pela beleza e pelo afastamento de uma paisagem hostil.
O porto era o lugar de chegada de turistas, mas também de milhares de trabalhadores/as que passaram a compor aquele cenário, que se mostrou frutífero para a criação de casas noturnas onde mulheres eram levadas a venda do corpo para própria sobrevivência, bares e outros pontos de comércio que formavam uma espécie de “submundo”.
Influência de outros centros urbanos
Outra questão importante eram os modelos de cidades europeias e norte-americanas reproduzidos em um território completamente diferente. A dinâmica criada por aqui inspirava-se diretamente em cidades estrangeiras nas quais, muitas vezes, estavam separadas a área residencial da área comercial. Assim, influenciados/as por esses grandes centros urbanos como Londres e Nova Iorque, construímos uma relação com a cidade em que uma zona servia para morar, enquanto a outra devia ser para trabalhar.
Outra característica importante é que o modelo norte-americano, por exemplo, privilegiava o trânsito de automóveis. Enquanto, aqui, havia os bondes, os trólebus e os trens como foco principal da mobilidade urbana. Dessa forma, considerava-se um avanço investir em rodovias no lugar de transporte coletivo por muito tempo, trazendo a essa mudança de direção uma aura de progresso.
Assim, o Plano Diretor de Santos de 1968 acaba por estabelecer um zoneamento muito rígido que seguia tais parâmetros, classificando a área central como zona estritamente comercial. Ainda no início da ocupação de Santos, as pessoas viviam no centro da cidade. Entretanto, com o Plano Diretor, isso passou a ser proibido – inclusive em um período em que estávamos sob a Ditadura Militar.
Cabe ressaltar que se considerava então, como área urbana, todo o território insular, embora os morros fossem objeto de lei específica, promulgada no mesmo dia. Nos morros, então, seria permitida apenas a permanência das moradias econômicas já existentes, chamadas assim por serem viabilizadas nas áreas mais degradadas da cidade, sujeitas aos inconvenientes dos usos mais impactantes.
Por outro lado, as atividades econômicas se beneficiavam principalmente da proximidade com o porto organizado e da infraestrutura de acesso de veículos de carga. O crescimento que se observou no período não considerava um equilíbrio socioambiental para o território local, o que levou à uma severa queda ambiental associada às atividades industriais (com o polo petroquímico e siderúrgico de Cubatão) e portuária.
Nesse ínterim, quem continuou no centro de Santos passou a acompanhar a transformação do seu lugar de moradia para uma localização que, politica e economicamente, buscava expulsar as pessoas. Entretanto, muitos/as foram expulsos/as de fato, formando áreas periféricas, passando a vivenciar a falta de acesso ao polo urbano central, ausência de infraestrutura, saneamento, entre outros problemas.
Comércio santista recebe expansão
Para entendermos mais sobre como as coisas são interligadas e vão alterando a dinâmica da cidade, podemos rever o movimento pendular, por exemplo, da histórica linha 4 que vai da Ponta da Praia até o Centro da Cidade. Ela fazia a conexão entre áreas para os/as moradores/as até o trabalho diariamente. As avenidas que cortam esse caminho, como a Ana Costa e a Conselheiro Nébias, com o tempo, passaram a se desenvolver e tornaram-se as primeiras competidoras comerciais com a área central.
E essa visão do centro como área estritamente comercial passa a perder força à medida em que vai evoluindo a visão de cidade, em que é interessante que o comércio esteja mais próximo de onde as pessoas residem. Nesse processo, cria-se o primeiro shopping da América Latina, o Super Centro Boqueirão, e passa a se formar uma nova centralidade comercial em outras partes da cidade, como exemplo, mais à frente, o Gonzaga, alterando o trânsito de pessoas nos locais.
As novas demandas solicitam, então, outras formas de acesso, outros espaços de convivência e comércio.
Petróleo e mobilidade
Outra questão importante que atravessa a cidade é o lobby do petróleo. Em dado momento, todas as linhas elétricas dos bondes foram substituídas por ônibus a gasolina, até mesmo por influência do estilo norte-americano e a visão de cidade que vinha do contexto regional, do Estado de São Paulo, e de âmbito federal, do Brasil.
Nos anos 70/80, com todos os olhares voltados para a democratização dos veículos individuais como o carro, as cidades do entorno recebiam os reflexos de tal política, estimulando o transporte individual com massivo investimento em rodovias, sem pensar no trânsito de pedestres e muito menos de ciclistas. Segundo Farinello:
“Não termos mais um trem de ligação Santos-São Paulo reflete uma política lá de trás em que não se investiu mais em transporte entre cidades a trem, se investiu em rodovias para o carro, então isso reflete a visão da sociedade como um todo”
A descoberta do pré-sal trouxe a especulação imobiliária, inclusive para a região do centro de Santos. E o município, naquele momento, conseguiu ter êxito em trazer investimentos. Foi nesse período que iniciaram as discussões para que a Petrobras fosse instalada no Valongo e também passou a se falar na implementação de um Veículo Leve Sobre Trilhos – VLT, apesar do enfoque direcionado a uma cidade feita para carros na época.
Hoje, pode-se perceber as tentativas de reverter esse processo, com a concretização das linhas do VLT e as linhas internas para bondes no centro de Santos. Trata-se de uma reflexão sobre as cidades que está ocorrendo no mundo todo, com as regiões passando por grandes transformações a medida em que os/as pesquisadores/as em conjunto com as pessoas de cada lugar apontam para a necessidade de cidades mais humanizadas, em que é preciso investir em ciclovias, em calçadas, em rotas acessíveis.
Master em Liderança e Gestão Pública do Singularidades-CLP, diretor da Kaiser Associates Latin America, o professor Antonio Napole falou muito sobre isso durante um evento realizado no Juicyhub, no Dia Mundial das Cidades. É fundamental que as pessoas ocupem os espaços e as cidades sejam pensadas para as pessoas que nela vivem e/ou nela querem transitar caminhando, pedalando… ocupando os lugares fora de veículos automotores.
“As cidades são o novo fator de desenvolvimento humano”
Mudanças no modo de pensar a cidade em Santos
Em 1998, surgiu um novo Plano Diretor para a cidade em complementação à lei n.53 de 15 de maio de 1992, a qual inseriu na legislação uma Lei de Uso e Ocupação do Solo de Santos, além da criação das Zonas Especiais de Interesse Público-ZEIS, como estratégia de reordenar o uso do solo e sua função social, incentivando empreendimentos que denotassem de algum tipo de interesse social. Para pesquisadoras como Paula Malavski, na prática, isso não ocorreu.
“O centro, neste período, manteve os mesmos problemas sociais de encortiçamento da população pobre e abandono dos imóveis por seus proprietários” (2011).
Em 2018, são editadas duas das mais importantes leis para a cidade, que não somente liberam a residência no centro como também passam a estabelecer estratégias para o necessário repovoamento: uma segunda edição do Plano Diretor, desde 1968, e a Lei de Uso e Ocupação do Solo. Entretanto, a pressão da população continua a existir, afinal o encortiçamento da população, como apontado por Malavski, ainda é uma realidade no centro de Santos até o presente momento.
No podcast AutentiCIDADES, produzido pelo Juicyhub, conversamos com a presidente da Associação dos Cortiços de Santos, Nay Faustino, que deu uma importante perspectiva sobre o assunto. Ela explica que os/as moradores/as dos cortiços não queriam e não querem ser transferidos/as para outros bairros e o poder público veio a entender a relevância disso depois de muitos anos de sofrimento dessas populações.
“A minha família inteira foi moradora de cortiço. Minha mãe, eu… e a minha luta é para que os meus filhos tenham outra realidade […] Pensa num casarão que era feito para uma família onde hoje vivem vinte famílias diferentes. E não queremos sair do nosso bairro, nós queremos o atendimento para moradia digna no nosso bairro, no Centro da Cidade”.
Moradias no Centro de Santos: repovoamento a médio e longo prazo
Para Farinello, depois de 30 anos de proibição de residências no centro da cidade com o Plano Diretor de 68, tanto a edição das legislações como a criação de novos dispositivos – como o próprio Alegra Centro, em 2019, visando a revitalização e o refuncionamento do conjunto arquitetônico central, são movimentos do poder público na direção de atender aos interesses de diferentes populações da própria região central, bem como de outros locais da cidade. Farinello:
“Quando a gente pensa em transformação de cidade, a gente pensa a médio longo prazo. Nós ficamos muitos anos vivendo sob a proibição de residências no centro, não vai ser em um ano, dois, que nós vamos conseguir reverter um processo histórico de expulsão das pessoas em direção à orla”.
Para o secretário, a edição do Plano Diretor de 2018 introduz o repovoamento como premissa básica, apontando para incentivos para a habitação. Entre os estímulos, está a ausência de cobrança pelo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, assim como também pela isenção de IPTU durante três anos de quem deseja fazer uma obra, um prédio ou uma residência na região. Para quem compra uma unidade, o ITBI também não é cobrado, assim com o IPTU, que não precisa ser pago por cinco anos.
“Esses são incentivos que foram criados nesse processo de 2018 pra cá, ou seja, não deu nem 5 anos ainda e, muito em breve, vamos começar a sentir o efeito dessas mudanças”.
Patrimônio histórico
Outro ponto que não pode deixar de ser comentado ao tocar no Centro de Santos é a preservação da história – o que apesar de representar grande riqueza para a cidade, no quesito habitação pode significar um complicador. É válido enfatizar que, em muitos casos, as sociedades ainda não possuem esse olhar para a importância do patrimônio, especialmente, ao tropeçar em algumas ideias extremamente capitalistas de que a inovação é sinônimo de “derruba tudo e constrói de novo”. Por outro lado, há uma visão de que para empreendedores/as, imóveis protegidos, tombados, podem configurar entraves.
Em outro passo, nos últimos anos, tem se falado nos modelos Retrofit: um processo que tem por objetivo restaurar prédios antigos de forma a preservar a arquitetura original e também adequá-los às demandas da modernidade. Dessa forma, não significa simplesmente criar habitação em um prédio velho, mas dar um novo uso, seja ele qual for.
Retrofit em Santos: o que está acontecendo?
De acordo com Farinello, há dois projetos em retrofit no Centro de Santos em fase de conclusão. Um deles tem previsão de entrega de 16 unidades, enquanto o outro vai oferecer 27 unidades. Além disso, há outros processos na prefeitura de Santos em etapas de aprovação e emissão de licenças com a perspectiva de novas habitações para a área central. O secretário comenta que nos bairros Paquetá e Valongo há outros grandes empreendimentos residenciais a serem concluídos.
“Realmente as pessoas são as peças transformadoras de uma cidade, hoje nós não temos gente morando em condição suficiente para manter um comércio e manter uma cidade ativa nessa área, mas daqui a 5 anos, vamos estar conversando sobre isso de outra forma”.
Farinello também aponta para um mito na região central: segundo muitos comentários, o que é protegido sempre acaba afastando empreendedores/as da construção civil – pelas dificuldades de manutenção e restauração dos imóveis, diante da extrema importância de se preservar a história da cidade, que é um pedaço da história do Brasil. Entretanto, estudos já mostraram que a maioria dos imóveis abandonados na área central não são os protegidos e tombados pela lei do patrimônio histórico. E isso acarreta em um grande conflito socioambiental, que contribui para os empecilhos em repovoar a região.
Afinal, se não há um investimento da iniciativa privada e do poder público, de forma integrada – com políticas públicas para atender ao que a iniciativa privada não abrange, o conflito não pode ser solucionado e, temos assim, as ocupações dos grupos sociais que exercem o direito à uma moradia digna, porém sendo vistos sob a ótica da invasão.
Por outro lado, mesmo para a revitalização arquitetônica há que se ponderar. Para a arquiteta e urbanista Jaqueline Fernández Alves, “é importante a criação de regulações e incentivos fiscais que facilitem a implantação das ações renovadoras, mas que também dificultem o processo de revitalização se ele é inadequado”. Além disso, “a participação da sociedade na construção e reconhecimento de uma identidade cultural própria é essencial” para a conquista de sustentabilidade para a cidade nesse sentido.
Quais são os movimentos para um novo centro de Santos?
Como pode-se notar, não é um assunto simples. Ainda nem tocamos no tema do potencial turístico ou da pandemia global; não abordamos ainda a grande tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul e que exigiu mais segurança para casas noturnas – modificando esse setor econômico em todo o país. E a questão da habitação popular no centro? Ou os empreendimentos em obra atualmente são somente para as mais altas rendas da cidade, como ocorre na orla da praia?
O fato é que deve existir um desejo político conjunto para fazer com que o centro da cidade possa pulsar novamente. Vamos continuar conversando sobre o assunto e ajudar a reescrever essa história? Acompanha a gente aqui e no Instagram para mais conteúdos sobre o tema.