O que Santos e o filme Ainda Estou Aqui têm em comum?
Santos é feita de muitas camadas. Tem a orla charmosa, os canais históricos, os bares que vivem mudando e os clássicos que nunca saem de moda. Mas também tem memórias escondidas à vista de todos — nomes de ruas, prédios, terminais de ônibus que carregam histórias que merecem ser contadas. E o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, nos lembra de uma delas: a de Rubens Paiva.
O nome pode soar familiar: ele batiza o terminal rodoviário local da cidade. Mas poucos sabem que Rubens nasceu, cresceu, estudou e ajudou a construir — literalmente — parte de Santos. Agora, sua história volta aos holofotes no longa, que reacende uma discussão fundamental: como o passado influencia as nossas famílias, nossa cidade e o Brasil como um todo?
Um santista marcado pela luta por justiça
Rubens Paiva nasceu em Santos, em 26 de dezembro de 1929. Estudou no tradicional Colégio Santista e formou-se em engenharia pelo Mackenzie. Durante sua juventude e início da vida adulta, esteve à frente de projetos urbanos, liderando a construtora Paiva, que foi responsável por edifícios icônicos na cidade — como o Porto Fino no canal 1, entre outros.
A arquitetura urbana de Santos, em parte, também carrega sua assinatura. E com ela, uma visão de desenvolvimento que se conectava ao seu olhar político: Rubens queria transformar o país — e começou pela cidade onde cresceu.
Da engenharia à resistência
A trajetória de Rubens vai muito além dos cálculos e construções. Ele também foi jornalista independente e político atuante, eleito deputado federal pelo PTB em 1962. Denunciava injustiças sociais, lutava por melhores condições de vida para a população e se opôs frontalmente ao golpe militar de 1964.
Essa resistência custou caro. Em 1971, Rubens foi preso por agentes do DOI-CODI e desapareceu. Sua família nunca o viu novamente. Sua morte só foi oficialmente reconhecida décadas depois — e até hoje, seu corpo nunca foi encontrado. Em 1992, a cidade de Santos deu seu nome ao terminal rodoviário, em um gesto simbólico e potente: homenagear um desaparecido político enquanto o país ainda evitava falar sobre o tema.
Uma família dividida pela política
A história contada em Ainda Estou Aqui não é apenas sobre um desaparecimento político. É sobre as consequências que isso provoca nas gerações seguintes. É também sobre um conflito familiar profundo, já que Rubens era filho de Jaime Paiva, um latifundiário conservador que apoiava o golpe militar.
Esse embate entre pai e filho, entre visões de mundo completamente opostas, ecoa até hoje. Afinal, quantas famílias brasileiras ainda vivem disputas políticas intensas dentro de casa?
O filme mostra como as escolhas e crenças de uma geração moldam a seguinte. E como, mesmo após a ausência forçada de Rubens, o peso da sua história seguiu afetando os filhos, os netos — e o Brasil.
Eunice Paiva: heroína real
Em meio a esse trauma, uma figura ganha destaque: Eunice Paiva, esposa de Rubens. Após o desaparecimento do marido, ela iniciou sua trajetória profissional tardiamente, ao ingressar em uma faculdade de Direito em Santos. Em um contexto de dor, repressão e silenciamento, Eunice se tornou símbolo de resiliência e empoderamento feminino.
Sua presença foi essencial para que a memória de Rubens se mantivesse viva — não só na família, mas na história do país.
Santos, palco da memória
Além de cenário da infância e juventude do político, Santos também é testemunha silenciosa da ditadura. Os prédios construídos por sua empresa continuam em pé e vivem no cotidiano da cidade. Porém, muitas vezes, sem que se saiba sua origem.
A história dele nos convida a enxergar a cidade com outros olhos: os nomes das ruas, os edifícios antigos, os espaços públicos que carregam histórias de luta e resistência. A própria existência do Terminal Rodoviário Rubens Paiva, nomeado enquanto ele ainda era considerado desaparecido, já é uma provocação: como construímos nossas homenagens? Como lidamos com a verdade histórica?
Por que essa história importa hoje?
Revisitar a trajetória de Rubens Paiva é mais do que um exercício de memória. É uma forma de compreender o presente. Em tempos de polarização, revisionismo histórico e debates rasos nas redes sociais, entender o que aconteceu no passado é essencial para não repetir os mesmos erros.
Rubens é parte da história de Santos. Sua vida atravessou a cidade, a política, a arquitetura, a comunicação. E sua ausência — forçada e violenta — também atravessa o Brasil.
O filme Ainda Estou Aqui e o debate que ele provoca nos lembram que, para seguir em frente, a gente precisa saber de onde veio. E Santos, com todas as suas camadas, está cheia de histórias que ainda precisam ser contadas.
O tema foi explorado em um dos episódios do podcast do Juicy Santos. Veja aqui: