Clique aqui e confira também nosso tema da semana

Santos: uma das cidades mais afetadas pelo golpe de 1964

A história do golpe de 1964 é amplamente difundida, mas o que muitas pessoas ainda não sabem é que Santos foi uma das cidades mais afetadas do país. Neste dia 31 de março, resgatamos essa história que nenhum santista deveria esquecer. O relatório final da Comissão da Verdade do Município de Santos – Prefeito Esmeraldo Tarquínio, realizado entre 2013 e 2014 concluiu que Santos foi “a cidade mais atingida e mais torturada pelo golpe militar”.

O golpe se auto-justificava para “conter a ameaça comunista” e uma necessidade de restauração da democracia. Naquela época Santos era apelidada de “Moscouzinha Brasileira”, “República Sindicalista” ou “Cidade Vermelha” pelos articuladores golpistas – e era vista como potencialmente perigosa devido à forte organização dos trabalhadores. Por isso, dirigentes sindicais foram os primeiros alvos da repressão civil-militar em Santos, onde sindicatos foram invadidos já no primeiro dia do golpe em primeiro de abril de 1964, e seus diretores foram perseguidos, presos e torturados.

O santista Rubens Paiva, santista, protagonizou, um dos momentos mais marcantes da história da política nacional através do discurso na Câmara dos Deputados, na madrugada de 1º de abril de 1964, denunciando o golpe e conclamando estudantes, sindicalistas e lideranças a defenderem a democracia. E seu triste fim ajudou a jogar ainda mais luz no tema.

O filme Ainda Estou Aqui, ganhador do Oscar de Melhor filme estrangeiro em 2025, contou a história do nosso conterrâneo que virou símbolo da necessidade de justiça e dos crimes cometidos naquela época. Sem ditadura militar, Rubens e sua família não teriam encarado tal horror. Falamos sobre a relação do filme Ainda Estou Aqui com a cidade de Santos neste podcast do Juicy Santos.

A cidade de Santos foi um “berço do sindicalismo e dos direitos trabalhistas do Brasil” e, proporcionalmente, possui o maior número de anistiados dentro do estado mais visado pela repressão. A repressão em Santos incluiu um intencional esvaziamento econômico e da intervenção no governo municipal, com a perda da autonomia, além da perseguição a trabalhadores.

A cidade foi escolhida como exemplo da força da repressão, com a instalação de um campo de concentração na Base Aérea (em Guarujá) e a utilização do navio-prisão Raul Soares para encarcerar os perseguidos.

Funcionários monitorados no Porto de Santos

Capa agência públicaIlustração da Agência Pública, que investigou como a Companhia Docas se aliou à ditadura
para monitorar funcionários no Porto de Santos

Outro impacto em Santos revelado pela Agência Pública, na matéria “Na ditadura, Companhia Docas de Santos monitorou funcionários“, em 31 de maio de 2023. Recomendamos a leitura da matéria completa para entender como existiu a colaboração entre a Companhia Docas de Santos (CDS) e o regime militar (especialmente o DOPS e a Marinha) para monitorar, perseguir e reprimir trabalhadores portuários.

A CDS não apenas tolerou, mas ativamente participou da repressão, configurando-se como uma das “empresas cúmplices da ditadura militar”, o que pode explicar a utilização do Porto de Santos como local de tortura e prisão, no Raul Soares. A matéria menciona a criação e atuação do Departamento de Vigilância Interna (DVI) da Companhia Dicas como órgão de repressão.

Inicialmente criado para segurança patrimonial, o DVI se tornou um instrumento para investigar a vida pessoal, comportamento e ideologia política dos trabalhadores, em colaboração com os militares, gerando prisões, demissões e o clima de “terror” como resultado do monitoramento constante, causando insegurança e dificuldades financeiras para os trabalhadores do porto. Alguns desses trabalhadores eram classificados como “comunistas” e “terroristas”.

O navio Raul Soares o porto de Santos

O navio da Marinha Raul Soares, originalmente um navio de passageiros construído em 1900, foi transformado em um presídio pela ditadura militar e ancorado no porto de Santos a partir de abril de 1964. Ele serviu como local de detenção para sindicalistas, políticos e outros opositores ao regime. As condições de vida no navio eram precárias e desumanas, com celas imundas, superlotação, falta de higiene e relatos de tortura física e psicológica.

A presença do Raul Soares em Santos tinha um forte significado psicológico, visando quebrar a resistência da cidade e sua organizada classe trabalhadora, intimidando e punindo aqueles que se opunham ao golpe. O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) teve um papel central na repressão, prendendo, interrogando e fichando os trabalhadores e líderes sindicais.

Lídia Maria de Melo, professora, jornalista, advogada e escritora tinha seis anos quando a polícia entrou no Sindicato dos Operários Portuários nas Docas de Santos, onde seu pai era um dos diretores. Em seu livro (Raul Soares, um navio tatuado em nós), ela descreve as visitas angustiantes ao pai no navio-prisão Raul Soares ancorado no estuário do porto de Santos, de sua mãe com sua irmãzinha-bebê no colo, dela e sua irmã subindo pela escada junto ao casco do navio. E do medo que tinha de cair.

Lídia também contou essa história durante as gravações do podcast Lendárias & Portuárias.

Lídia relembra a disparidade entre o que era ensinado na escola e a realidade vivida pela família sob a ditadura, e a precaução de sua mãe em relação ao que podia ser falado fora de casa: “Ela sempre advertia: não falem lá fora sobre o que conversamos aqui dentro de casa, pode chamar a atenção sobre nós”. A prisão do pai forçou a mãe de Lídia a assumir sozinha a educação e sustento das filhas. Após a libertação, ainda assim seu pai enfrentou dificuldades para encontrar emprego e vivia sob vigilância constante, sendo obrigado a exercer trabalhos mal remunerados.

Os presos sofreram e suas famílias idem. A prisão e a perseguição, levaram muita gente a enfrentar dificuldades financeiras e emocionais. Mesmo após serem soltos, muitos continuaram a ser vigiados e tiveram suas vidas marcadas pela experiência da repressão. O santista Rubens Paiva não teve essa sorte e foi levado pelo DOPS em 2o de janeiro de 1971. Seu corpo nunca foi encontrado.

Rubens Paiva: um santista assassinado pela ditadura

O filme Ainda Estou Aqui ganhou reconhecimento mundial trazendo a história da família Paiva. Baseado no livro Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado assassinado, o filme traz Eunice Paiva como protagonista. Diferente da história da família de Lídia Maria de Melo, o “pai” nunca voltou para casa depois de ser levado pelos agentes da ditadura. A versão divulgada pelos militares, a partir de 22 de janeiro de 1971, negava a prisão de Rubens e alegava que ele havia sido resgatado por “elementos desconhecidos, possivelmente terroristas”.

A família Paiva, especialmente Eunice e Marcelo, lutaram incansavelmente por justiça e pela verdade sobre o desaparecimento de Rubens. Somente em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente Rubens Paiva como desaparecido político e emitiu sua certidão de óbito. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, reuniu em 2012 documentos e depoimentos que confirmaram a entrada de Rubens Paiva no DOI-CODI.

Rubens Paiva e família em foto preto e brancoRubens Paiva, com sua esposa Eunice Paiva, sua mãe e seus filhos.
Foto de acervo pessoal no Memorial da Democracia.

A relação de Rubens com Santos está concentrada em alguns pontos de sua história: ele estudou no tradicional Colégio Santista. O Terminal Urbano de Integração de Passageiros Rubens Paiva foi inaugurado em 6 de junho de 1992, quatro anos antes da declaração oficial de sua morte. Isso demonstra como a memória de Paiva já estava presente na cidade. A empresa de engenharia de Rubens Paiva também construiu alguns prédios em Santos.

Rubens Paiva, santista, protagonizou, um dos momentos mais marcantes da história da política nacional através do discurso na Câmara dos Deputados, na madrugada de 1º de abril de 1964, denunciando o golpe e conclamando estudantes, sindicalistas e lideranças a defenderem a democracia. Esse discurso pode ser ouvido aqui. A grande ironia é que seu pai, o poderoso Jaime Almeida Paiva, também santista, foi um dos apoiadores do golpe.

O prefeito de Santos que nunca assumiu

Esmeraldo Tarquínio foi eleito prefeito de Santos em 1969, mas que teve seus direitos políticos cassados pela ditadura militar antes de assumir o cargo. É ele que nomeia a comissão da verdade. A autonomia política de Santos só foi reconquistada em 1983.

A ditadura causou a destruição das organizações dos trabalhadores, da cultura política da cidade e da liberdade de manifestação e eleição. Alguns de seus efeitos permanecem até os dias atuais.

O filho de Esmeraldo, Esmeraldo Tarquínio Neto, em entrevista refletiu sobre o potencial perdido para Santos com a cassação do pai: “Até onde teríamos chegado se Esmeraldo Tarquínio tivesse assumido a condução da cidade? Provavelmente teríamos alcançado o patamar do desenvolvimento econômico acelerado, o crescimento ordenado da população, a ocupação racional e planejada de seus espaços e a integração do Porto ao Município.”.

Apesar de não ter assumido a prefeitura, seu legado político é considerado eterno. A Lei Municipal 1.678 instituiu o “Dia Esmeraldo Tarquínio” em 12 de abril.

Revisitar e rememorar os eventos do golpe de 1964 e da ditadura militar é crucial para a sociedade santista e brasileira construir uma memória comprometida com os valores democráticos e os direitos humanos.

Compreender as motivações do golpe, as formas de repressão utilizadas e as consequências para as vítimas ajuda a evitar que tais eventos se repitam no futuro, como vimos acontecer em 8 de janeiro de 2023. A memória desses eventos também serve como um alerta para a fragilidade da democracia e a necessidade de vigilância contra autoritarismos e violações de direitos.

Reconhecer a história da resistência e da luta de tantos santistas por direitos durante a ditadura é fundamental para conhecermos nossa própria história de coragem. E além disso, evitar que a época da ditadura militar no Brasil seja abrandada por conta de anistias.

Ludmilla Rossi
Texto por