Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Por que votar em candidatos negros nas eleições de 2020?

Por que mulheres e negros votam em homens brancos em todas as eleições?

Por que, ao longo da história, mulheres e negros se fazem representar por homens brancos?

Isso é legal? A vida está boa assim?

Sobra igualdade e equidade entre homens e mulheres? Sobra igualdade e equidade entre negros e brancos?

Vale esclarecer:
– igualdade é dar às pessoas as mesmas oportunidades.
– equidade é adaptar as oportunidades, deixando-as justas.

Representatividade importa para toda a humanidade. Humanidade formada por pessoas, independentemente de orientação sexual, identidade de gênero, classe, religião, raça, idade, grau de instrução, dinheiro no banco…

Mas por que mesmo insistimos em eleger homens brancos se somos a maioria da população como mulheres, negros e negras?

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Por que existe uma lei exigindo que os partidos políticos reservem 30% de suas vagas para candidaturas femininas se somos 51,8% da população e 52,49% do eleitorado feminino?

Por que existe uma determinação do Supremo Tribunal Federal impondo que 30% do dinheiro público usado nas campanhas políticas sejam destinados às candidaturas negras, se somos 56,2%?

Não é demais ressaltar que dinheiro público é dinheiro do povo brasileiro – em sua maioria, formado por mulheres e gente preta!

Qual é o nosso problema? Por que não nos fazemos representar nas várias esferas de poder: na cidade, no estado, no país?

Elegemos pessoas que não colocam mulheres e negros à frente de secretarias e ministérios, que não nos indicam para cargos de confiança. E, mesmo assim, diante da urna, apertamos teclas que representam o poder hegemônico desde sempre. Por quê?

Um único candidato negro à Prefeitura de Santos

No começo do mês, o jornal A Tribuna escreveu em um de seus títulos: “Com apenas um candidato negro, Santos gera sensação de falta de representatividade”. O texto informa que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo 2010 – defasado -, são 112 mil as pessoas autodeclaradas pretas e pardas na cidade. Ou pouco mais de 25% dos 433 mil habitantes.

Meu estranhamento – para usar uma palavra suave – foi ler a reação dos leitores e leitoras nas redes sociais, desqualificando a denúncia e responsabilizando a população negra pela situação.

A ausência de argumentos dos “indignados” é prova inquestionável da eficácia do racismo estrutural – que se sustenta na ignorância, na desinformação, na falta de educação. Tudo limitado a expressões como: “mimimi”, “o assunto é um porre”, “chato”, “o jornal está muito ruim”, “negro não se candidata porque não quer” e “ter um único candidato a prefeito é bom, basta que todos os negros votem nele”.

Para nós um candidato é suficiente? Como assim?

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Me permito responder à “sugestão” do leitor, de forma didática e limitando-me: brancos – apesar de alguns terem a pele rosada, vermelha, cor de ferrugem, cor de cera, com pintas, morenos, loiros, ruivos… – podem escolher candidatos de direita, esquerda, centro, centro-direita, centro-esquerda… Negros – apesar separados em pretos e pardos nas estatísticas oficiais – não pensam, não têm opinião nem viés político, tendência ideológica, pontos de vista…

A proposta desta coluna é ecoar Vozes Pretas. Mas dediquei algumas linhas a “vozes brancas” para fazer um esclarecimento pontual – não somos um monolito. Mas principalmente para chamar atenção para um fato que nos coloca em posição de igualdade: o que acontece com a população negra no que diz respeito à política, acontece com a população de mulheres brancas, também sub-representada.

E esta é a questão, o problema: estamos nos fazendo invisíveis como cidadãs e como cidadãos negros. O “porre” não é denunciar o racismo. O “porre” é a gente não se fazer representar. Representatividade importa sim.

Qualificar o voto

Eu, mulher negra, digo “vote preta”, porque quando a mulher negra ocupa os espaços de poder, todos ganham.

Tempo de contrapartida: até agora nos fizemos representar por brancos. Mas tudo de bom que for aprovado e feito para o povo preto repercute, como uma onda, na sociedade inteira.

Temos que nos perguntar: Por que votamos em homens brancos?

E temos de buscar a resposta, compreender a nossa lógica e mudar.

Nada de dizer que a pergunta faz sentido ou que “é um porre”, “mimimi”.

Vamos além! Mulheres e negros são sub-representados na política e representatividade é o que vai fazer a diferença no mercado de trabalho, na vida em sociedade, na prática da cidadania, na contenção da violência doméstica, do feminicídio, do assédio, do abuso.

Pode ser que alguém esteja pensando que “odeia esse negócio de feminismo”… “que o feminismo é um porre”. E pode ser que esta mesma pessoa adore andar de calça comprida, usar biquini, beber no bar, trabalhar, dar sua opinião em alto e bom som… Pois que ninguém se iluda…

Nossa liberdade tem o nome e sobrenome de feministas, que jogaram o sutiã na rua, que enfrentaram o poder instituído, sem e com maquiagem, com as pernas depiladas ou não… fruto da ação de feministas. Nos mínimos detalhes…

Participar das eleições, fazer julgamento político, é conquista de mulheres de todas as classes sociais, de todas as cores, que lutaram, e apanharam da polícia, perderam a guarda de seus filhos, seus subempregos, tiveram o casamento desfeito, para que pudéssemos ter direito a votar e a ser votadas. Vale inspirar-se, assistir As Sufragistas e qualificar o voto.

Na história política do Brasil, até 1934, mulheres, negros e pobres e não tinham direito a voto e seguimos – repito – sub-representados, sub-representadas.

Um pouco de história

Nossa primeira Constituição, outorgada por Dom Pedro I em 1824, estabelece as normas do sistema eleitoral e o órgão máximo do Poder Legislativo, composto pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.

O voto era obrigatório: apenas para homens com mais de 25 anos e renda anual mínima de 100 mil réis (algo em torno de R$ 1 milhão). A idade mínima não valia no caso de casados, clérigos, militares e bacharéis.

Os que votavam eram os “eleitores de paróquia” – com renda mínima comprovada. Eles elegiam os “eleitores de província”, que escolhiam os deputados. Estes, os “de província”, podiam candidatar-se a deputados, desde que comprovassem renda mínima de 400 mil réis por ano. O sistema era chamado voto censitário, baseado no poder econômico, com eleição indireta.

A maioria dos senadores – com renda mínima obrigatória de 800 mil réis anuais – era nomeada pelo Império.

Voto negro

Mas a questão mais importante neste espaço é a cidadania dos negros e negras do Brasil e a promoção de seus direitos humanos.

Naquela época, já éramos a maioria da população: mais de cinco milhões de africanos, sequestrados, traficados e vendidos como escravos vivam no Brasil, sem direitos.

De acordo com Ane Ferrari Ramos Cajado, historiadora do Museu do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, no Império, a situação dos libertos (escravizados que conseguiram comprar a liberdade) e dos ingênuos (nascidos do ventre livre de mãe escrava) era controversa.

Os libertos podiam votar, tinham assegurada a cidadania brasileira. Mas a Constituição de 1824 nada mencionava sobre os ingênuos, abrindo espaço para a interpretação de que eles poderiam votar e ser votados. Só que não havia unanimidade nesse entendimento, o que tornava ainda mais confusa a vida real. E tinha a questão do dinheiro…

Em 1881, quer dizer, 57 anos depois, uma reforma eleitoral no Império, conhecida como Lei Saraiva, proibiu também o voto do analfabeto, que puderam votaram durante a maior parte da história do Brasil.

Saber ler e escrever nunca foi requisito e, sim, ter dinheiro – até porque 90% dos brasileiros eram iletrados no início do Império. Na verdade, a guilhotina caiu sobre os analfabetos por conta da questão racial.

“Escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum”, argumentava Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral.

E tudo torna-se explícito com a assinatura da Lei 3.353 que, em dois artigos – um em cada linha -, extingue a escravidão no Brasil, sem garantir qualquer direito aos libertos.

Leis racistas

Mas as leis Saraiva e Áurea não são as únicas responsáveis pela não participação dos negros na vida política do país. Teorias cientificistas que atestavam nossa inferioridade racial, a propensão natural para o crime, a vinculação com epidemias, entre outros estigmas construídos em torno da identidade negra, garantiram o sucesso dos supremacistas brancos.

O ideário do racismo científico – “alicerçado” em preceitos do ponto de vista biológico, intelectual, cultural e moral – cresciam no plano político, social e simbólico.

Boa parte das elites intelectuais e políticas – juristas, engenheiros, médicos, jornalistas, professores e autoridades públicas – acreditavam que a presença de africanos e seus descendentes representava um obstáculo para a melhoria da raça, para a formação do povo e a prosperidade da nação!

Imagens, representações e narrativas associando os negros a coisas negativas (atraso, ignorância, vadiagem, anomia) eram recorrentes. A intolerância racial grassava no cotidiano, nos impedindo de frequentar cinemas, teatros, restaurantes, hotéis, clubes e escolas…

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Na raça

O jurista pernambucano Manoel da Motta Monteiro Lopes, com discurso racial afirmativo, conseguiu candidatar-se e ser eleito no final da primeira década do século XX. O desafio foi tomar posse. Enfrentou uma avalanche de protestos, mas o Brasil negro e antirracista garantiu sua diplomação. Ele é o primeiro deputado federal eleito na então capital do país, o Rio de Janeiro. Sua posse data de 1º de maio de 1909.

A “boa sociedade”, em situação de poder, encarou o político preto como um outsider e permitiu sua candidatura na certeza de que não daria em nada. O único trabalho seria estigmatizá-lo, menosprezá-lo, tratá-lo como inferior. E assim fizeram. Mas ele enfrentou, superou e seguiu encarando o racismo de frente.

Mesmo transitando em vários ambientes – irmandade religiosa, maçonaria, agremiações partidárias, jornais, clubes, gabinetes, fóruns -, dominando a gramática da “boa sociedade”, com status de advogado e parlamentar, por causa da cor foi impedido de entrar com sua esposa no suntuoso bar do Pavilhão de Regatas, para assistir às competições náuticas, e de se hospedar no Hotel Grindler, no Rio Grande do Sul, mesmo com reserva, para contar o mínimo.

O racismo à brasileira no período da Primeira República, como em pleno século XI, é o mesmo, com ofensas cotidianas, a nós negros, desrespeito a direitos sociais e políticos e dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, a escolas de qualidades e moradia digna.

Mesmo assim, vale frisar que Monteiro Lopes rompe com estereótipos impingidos ao negro nas primeiras décadas do pós-abolição. Nada de alienação ou subalternidade. E, sim, versatilidade, apropriação de direitos universais, cidadania e igualdade para fazer valer projetos, anseios e ideais.

Quintino de Lacerda, um pioneiro na Câmara de Santos

O vereador quilombola Quintino de Lacerda, chefe do segundo maior quilombo do Brasil, o Jabaquara, passou por situação parecida a de Montero Lopes. Eleito o vereador mais votado de Santos, em 1895, precisou da Justiça de São Paulo para tomar posse. E, por conta do racismo, tornou-se não só o primeiro vereador, mas também o primeiro presidente negro da Câmara Municipal da cidade.

Tintino, como era conhecido, nasceu escravo, na cidade de Itabaiana, em Sergipe, em 8 de junho de 1839. Alforriado pelo abolicionista Lacerda Franco, oito anos após ter sido comprado, trabalhou como inspetor de quarteirão, administrador da Limpeza Pública Municipal, cozinheiro e era figura central nos movimentos sociais e debates políticos.

Os dois, nordestinos, por estranha coincidência, não conseguiram concluir seus mandatos. Morreram.

Santos não era racista! Incentivou a luta abolicionista, antecipou a libertação dos escravos, acolheu por muito tempo mais de 10 mil escravizados fugidos do interior paulista, elegeu Tintino… Embora, é verdade, a vitória quilombola tenha revelado a outra face da cidade.

Voto feminino

A Nova Zelândia é o primeiro país do mundo a conceder direitos de voto para as mulheres. As neozelandesas foram às urnas durante as eleições nacionais em novembro de 1893, século XIX!

No Brasil, só a partir de 1932. E, mesmo assim, as casadas, autorizadas pelos maridos; as viúvas e solteiras, com renda própria.

Em 1934, liberou geral, mas sem obrigatoriedade – o voto foi um dever só para os homens até 1946.

Quanto aos analfabetos e analfabetas, por 104 anos ficaram impedidos de votar e só voltaram às urnas, na primeira eleição depois da ditadura, a partir de uma emenda à Constituição, aprovada em maio de 1985.

A resistência

A história evidencia os nossos desafios e a resistência em se compartilhar poder, quando se está nele. Daí a responsabilidade maior de cada pessoa sub-representada, de construir um futuro diferente, inclusivo, melhor.

Se no próximo 15 de novembro, data das próximas eleições, todos os eleitores e eleitoras que se dizem antirracistas escolherem candidaturas negras para darem seus votos, pela primeira vez na história, faremos mais de seis mil prefeitos e vereadores pretos. “Uma revolução sem precedentes…” – e eu só me inspiro, praticamente copio, o primeiro parágrafo da coluna, da semana passada, de Dodô Azevedo, na Folha de S. Paulo.

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