Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Como o racismo se manifesta na linguagem – construindo um vocabulário antirracista

A noite foi exaustiva.

O sono, nada reparador.

As oito horas em que deveria descansar o corpo físico foram recheadas de  frases de fortalecimento, de ação afirmativa do estar negro, estar negra na vida, explicando, à exaustão, quem somos.

Ao mesmo tempo, velhas frases, mal ditas, apareciam piscando, em luz neon, garrafais…

Impossível dormir.

Assim surgiu a coluna desta semana. No sonho-pesadelo, eu podia jurar que já havia explicado o mal embutido na Língua Portuguesa por conta do racismo, além dos obstáculos concretos no acesso a direitos, bens e serviços.

Nem tudo tem a ver com condições dignas de vida, saúde e educação. Existem os efeitos colaterais… a baixa autoestima, os problemas de aceitação, de ordem psicológica e até o desejo de morte.

www.juicysantos.com.br - mulher negra sendo vítima de racismo

Segundo pesquisa do instituto Psychology of Addictive Behaviors, vítimas de racismo são mais propensas a ter problemas com álcool, drogas e depressão.

Em meu sonho-pesadelo, dizia para mim mesmo: muda de assunto, falar disso machuca feridas ainda abertas, infectadas.

Tudo é crime, previsto em lei! Sem direito à fiança. Mas enquanto a Justiça falha, a vida se perde entre os dedos.

Trata-se da Lei 7.716/1989.

Mas meus argumentos – com os fantasmas da noite – de nada adiantavam!

E eu acordava, exausta, angustiada…

Quando conseguia, mais uma vez, fechar os olhos, lá estavam elas, de novo, em letras garrafais, luz neon, movimentando-se em cores vibrantes, gritando na minha mente.

Só quando clareou o dia, eu entendi: nem sonho nem pesadelo, vida real, cotidiana.

Ubuntu

Ubuntu, palavra bantu, sintetiza uma filosofia africana de fraternidade:

“Sou quem sou porque somos todos”.

Ela ensina que ninguém consegue ser feliz quando a maioria está sofrendo, está com a alma triste.

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E este é o ponto: eu, pessoalmente, não sou vítima de racismo no meu cotidiano. Mas sou vítima de racismo, todo dia, como povo, como preta.

Cada vez que um pescoço negro é comprimido pela polícia, que um jovem negro é assassinado, que uma criança negra cai do alto de um prédio, que uma mulher é violada, que um estudante preto troca o livro pela droga, a família pela rua, o alimento na mesa pela comida do lixo, eu sinto a mesma dor.

A miséria tem cor

Talvez por isso esta invasão no sonho, como um grito, um pedido de minha alma, para que eu insista, para que eu, mais uma vez, chame atenção para o que não deve ser dito.

Palavras têm energia. Falam mais do que as letras que as compõem.

Engole a frase

Quando eu era criança, minha mãe dizia “engole o choro”. Acredito que muita mãe já ouviu e já disse isso.

Hoje, a gente sabe que “engole o choro” é tudo que não se deve dizer, porque impede que o outro manifeste seu sentir, sua emoção, sua dor. E tal repressão se reflete na vida adulta.

Mas engole a frase, acredito, pode ser um bom gatilho para começarmos a pensar antes de lançar frases declaradamente racistas.

Autoconhecimento transforma quando vem acompanhado de reeducação.

Expressões que perpetuam o racismo

O professor de biologia Luiz Henrique Rosa reuniu seus alunos para um levantamento sobre expressões de cunho racista no ambiente escolar. Os estudantes contabilizaram 360 expressões em uma única escola do Rio de Janeiro! O projeto “Qual é a graça” evidenciou a violência simbólica, sutil, embutida nas brincadeiras e aparentes elogios que lançam mão de características físicas na sua construção.

Quando expressões como❌ “mulata”, ❌ “ovelha negra”  ou ❌ “a coisa tá preta” se tornam naturais. E é indício de o quanto a opressão e o preconceito estão incorporados à visão de mundo das pessoas – comenta o professor Luiz Henrique.

Por isso, aqui, vamos nos obrigar a repetir e explicar o significado pejorativo de algumas delas. E, ainda, colocar o sinal de proibido na frente, para que tais expressões sejam eliminadas do vocabulário, da nossa língua corrente, das nossas conversas, do nosso pensar:

❌ “Serviço de preto” sinônimo de tarefa malfeita, realizada de forma errada, associação racista à qualidade do nosso trabalho;

❌“Não sou tuas nega” – reproduz a ideia de que mulheres negras não são dignas de respeito, passaporte para a irresponsabilidade afetiva. Referência histórica, que remete às escravas que sofriam abusos e maus-tratos dos senhores brancos.

❌ “Você não é tão negra. Você é uma morena linda” – ensina o dicionário que morena “é mulher com cabelo preto ou castanho, geralmente de tez mais escura do que as louras”. É uma variação da raça branca. E mais: o que a minha beleza tem a ver com a cor da minha pele? Quem diz “Você é uma branca linda?!”

❌ “Você é tão exótica!” o dicionário também ensina que este adjetivo está ligado ao que não é comum. E nossa beleza é comum, afinal, somos a maioria do povo brasileiro.

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Na expressão ❌“a coisa está preta” há o uso do termo preto como valor negativo, uma associação pejorativa, de ser ruim. O mesmo acontece com ❌“mercado negro”, que embute, ainda, um agravante histórico: a origem do termo é ligada ao mercado ilegal de escravos, que passou a vigorar no Brasil após a proibição do tráfico.

Sinônimo de tornar negro, o verbo ❌“denegrir” significa “deturpar, destruir, fazer mal”.

E tem também o ❌ “Moço, você trabalha aqui?”. Cuide de não confundir todo negro alto com o segurança de plantão.

Este, aliás, é um dado curioso do racismo à brasileira: ou negros são confundidos com segurança ou com bandidos! Claro, segurança só se estiver de terno preto.

Delivery de drogas

E, assim, entramos na cor da violência, que gera injustiça e morte, na criminalização das drogas.

❌ “Negro parado é suspeito, correndo é ladrão, voando é urubu.” 

Os presídios estão cheios de pessoas negras, presas com gramas de drogas. Mesmo assim, nada surte efeito na redução do consumo, muito menos na segurança da população. Mas, certamente, tem gerado lucro para traficantes donos de helicópteros com cargos em Brasília, policiais milicianos, donos de “clínicas” de internação obrigatória…

E eu reescrevo a filósofa Djamila Ribeiro.

“O verdadeiro crime de drogas é cometido por esse sistema que lucra em cima da desinformação, do medo e da morte, porém tais carrascos seguem engravatados e sem punição, enquanto meninos lotam masmorras e cemitérios na posse de farelos.”

Lucas Morais da Trindade é um desses. Preso por posse de 10 gramas de maconha, foi condenado a cinco anos e quatro meses de reclusão.

Lucas nasceu negro. Teve três habeas corpus negados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Teve Covid-19 na cela. Teve atestado de óbito com data de 4 de julho de 2020, aos 28 anos de idade.

❌ “Negro é traficante, branco é estudante que faz ‘delivery de drogas’.”

Verdades embaraçosas

Apesar dos 350 anos de trabalhos forçados, permanece a insistência em considerar o povo preto sinônimo de vagabundagem!

❌ “Neguinho é muito folgado”

Apesar de nosso leite materno ter alimentado filhos não nascidos de nosso ventre, do nosso conhecimento medicinal ter salvado vidas, da nossa escrita ser importante na literatura mundial, insistem em limitar a nossa existência entre a cozinha e a cama.

 ❌ “Da cor do pecado”

Outra expressão que nos classifica como objeto, que retira a humanidade e hipersexualiza a população negra, sem possibilidade de gerar, escolher e trocar afeto. E mais: relaciona pessoas negras à contravenção, ao ilegal, ao proibido, em contraposição à norma, à pureza e à correção das pessoas brancas que, de verdade, pecaram ao explorar e macular corpos negros.

Apesar da generosidade de partilhar nossos conhecimentos da mata e a força da nossa religiosidade transformaram em crime, logo após a abolição, também estes nossos saberes, nossa conexão com o divino. E ainda hoje, apesar do Estado laico, as religiões de matriz africana são tratadas com intransigência.

Intolerância religiosa é crime, pela Lei 9.459/1997. Mas quem se importa?

É exaustivo ter de repetir-se, insistir no que está mais que provado. Não somos nós os ladrões. Não é nossa a cor da corrupção. Não temos a cor do pecado, do erro. Não somos nós os autores dos maiores crimes contra a humanidade.

O saber, a competência, a amorosidade, a capacidade de perdão, a beleza tudo é em nós. Invejam os nossos cabelos, as formas do nosso corpo, nossos lábios grossos, nosso sorriso largo, nosso caminhar, o tom da nossa pele… Mas nos querem invisíveis. Chega!

❌ “Pelo menos você tem os traços finos” 

Isso não é um elogio. É racismo, é querer desqualificar pela aparência, apesar da inveja. Se fosse tão bom ter traços finos, as clínicas de estética não ganhariam tanto dinheiro!

A noite não foi boa! Por isso o cansaço em mais esta tentativa de fazer despertar, em tirar o véu do olhar, para perceber quem somos. Não como povo preto, mas como povo brasileiro, como o melhor do povo brasileiro.

Quem paga a conta?

O Anuário de Segurança Pública 2019, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, informa que, dos mortos pela polícia, 75,4% são negros. E que 90% dessas mortes não são investigadas.

“Eu não quero mais pagar policiais para tratar dessa maneira os jovens negros. Eu quero ter outro tipo de relação com eles”, escreveu o sociólogo Emir Sader, após os recentes episódios de violência policial contra negros no Brasil, que acontecem desde sempre.

Eu, mãe, não quero pagar policiais para ver um jovem negro morrer a cada 23 minutos.

O mais hediondo crime cometido diariamente no Brasil é o genocídio dos jovens negros. Eles morrem às dezenas, todos os dias, sem nomes, sem rostos, sem família. Morrem, acusados de resistência.

E nós pagamos os salários, os armamentos, a munição, os uniformes, os carros, o combustível… Isso é cruel.

“A carne mais barata do mercado
É a carne negra
Tá ligado que não é fácil, né, mano?
Se liga aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Só-só cego não vê

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Dizem por aí

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história
Segurando esse país no braço, meu irmão
O cabra que não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador…”

Que ecoe a voz de Elza Soares…

A carne mais barata do mercado é a minha carne negra!

A gente precisa se sentir parte. Cansada de ser “invisível”,  pedaço de carne, ❌ “mulata para fornicar”… 

Cansada. 

Cansada do imaginário social, de quem tem “o fetiche de transar com um homem negro” e acredita que isso é postura antirracista.

Claro que o sentimento do homem branco, por conta de tal fetiche, é apenas ❌ “inveja branca”, positiva! (Por favor, percebam que foi uma ironia.)

Na defensiva

Mas nada é por maldade. Tudo é sem querer. Aliás, ter amigos, parceiros sexuais, tataravós, babás e amas-de-leite negros e negras sempre foram argumentos para pessoas brancas falarem de seu amor pelo povo preto e até validar atitudes racistas.

❌ “Eu não enxergo cores, enxergo seres humanos.”

Lindo! Quer dizer que você não percebe seu próprio privilégio. Não há nada de errado e reconhecer que somos diferentes. Enxergar diferenças nos permite reconhecer que, justamente por isso, o tratamento é desigual.

❌ “Nem todo branco é racista.”

Verdade. Quando o assunto é desigualdade, racismo estrutural, institucional, estamos nos referindo ao sistema que dá privilégio a pessoas, não de modo único, mas universal.

❌ “Mas eu sou branco e também sofro racismo, me chamavam de branquelo quando eu era criança.” 

E voltamos ao privilégio branco de nunca ter sido proibido de entrar numa casa noturna, hotel, restaurante; de não receber salário menor exercendo a mesma função; de não ter questionada sua credibilidade intelectual, seu caráter; de não ser seguido em shoppings e supermercados; de perder uma vaga de emprego até por ter um nome afro; de temer pela vida dos seus filhos, tudo por conta da cor da sua pele.

Racismo e preconceito pressupõem atitudes distintas. Racismo é um sistema de poderes que priva negros de direitos iguais. Preconceito é questão de opinião.

❌”Por que não tem dia da consciência humana?”  

Eenquanto a desigualdade perdurar em nossa sociedade, teremos de reservar um momento, um dia, um mês, para refletir a questão racial no país, os avanços por mais  inclusão e igualdade e contra a opressão.

 ❌”Hoje em dia tudo é racismo, eu hein…”

Sempre foi. A diferença é que, agora, estamos nos posicionando. Acabou o silêncio.

❌“Mas por que vocês odeiam brancos?!”

A pergunta ao contrário faria mais sentido. Não odiamos ninguém. Queremos direitos iguais, respeito.

Não existe harmonia nem cordialidade em todas estas falas.

Acorda, humanidade, para a riqueza do encontro.

Encontro que não começou bem, é verdade.

E, por isso mesmo, precisa melhorar. É urgente.

Nossa alma não é branca, mas nosso sangue é vermelho.