Sonífera Ilha: como Santos inspirou um dos maiores hits dos Titãs
A composição de Ciro Pessoa nasceu quase que por acaso quando ele passava dias na cidade
“Numa ilha sonífera a ilha descansa meus olhos sossega minha boca me enche de luz”.
Quem nunca cantou esse refrão hipnótico que embalou gerações desde 1984?
Foto: Antônio Moura
Mas poucos sabem que por trás de um dos maiores sucessos dos Titãs pode estar uma pequena ilha verdinha que você vê da orla de Santos: a misteriosa Urubuqueçaba.
A história de Sonífera Ilha é tão inusitada quanto a própria banda. Composta por cinco amigos durante uma sessão despretensiosa de bebidas e violão, rejeitada por gravadoras, gravada num estúdio minúsculo de jingles e tocada sem autorização na rádio, a música virou um fenômeno nacional quase por acidente.
E no centro dessa história está Ciro Pessoa, o poeta do rock brasileiro que nos deixou em 2020, mas cujo legado continua ecoando nas ondas do rádio e nas areias do litoral paulista.
O litoral paulista na formação do compositor
Embora a música tenha sido finalizada em São Paulo, o litoral santista desempenhou papel fundamental na trajetória de Branco Melo, um dos co-autores da canção. Entre 1967 e 1975, ele passou várias férias no Edifício Gran Jaú, na Praia de Itararé, em São Vicente. Foi ali que começou a aprender sobre música com amigos e formou sua primeira banda.
Aos 12 anos, suas experiências musicais se intensificaram na região: ele assistiu a shows de Secos e Molhados e Mutantes na Ilha Porchat. Mas o momento decisivo aconteceu no Ilha Porchat Clube, em 1969, quando cantou pela primeira vez num festival de calouros com “Aroeira”, de Geraldo Vandré.
O segundo lugar lhe rendeu um prêmio em dinheiro que permitiu comprar seu primeiro violão, o instrumento com o qual comporia suas primeiras músicas.
A conexão com Urubuqueçaba
Embora não exista confirmação oficial, um rumor persiste. Ciro Pessoa teria se inspirado na Ilha de Urubuqueçaba, em Santos, para criar “Sonífera Ilha”.

Durante as férias, o compositor frequentava a região. A ilha, acessível a pé na maré baixa, deixou impressões marcantes. Com o tempo, essas imagens viraram versos poéticos.
Quem caminha pela orla do José Menino logo percebe a ilha pequena e verdinha. Ela fica a cerca de 200 metros da faixa de areia.
O nome “Urubuqueçaba” vem do tupi e significa “lugar onde ficam os urubus”. A ilha aparece em registros desde o período colonial. Ainda assim, nunca teve ocupação oficial nem construções permanentes.
Isso acontece porque a área é de preservação ambiental. A lei protege a vegetação nativa, os animais silvestres e o relevo acentuado. Curiosamente, moradores antigos de Santos chamavam o local de “Ilha das Cobras”. Eles usavam o apelido de forma estratégica.
Assim, afastavam curiosos e possíveis invasores. A tática ajudou a criar uma aura misteriosa, que dialoga com a letra da música.
A ilha real: entre projetos e preservação
Apesar da proximidade com a praia, a visitação à ilha é proibida. A travessia é perigosa, não há estrutura para receber visitantes, e o ambiente apresenta riscos com vegetação fechada, pedras escorregadias, animais peçonhentos e correntezas complicadas.
A Ilha de Urubuqueçaba já foi cogitada para usos bem diferentes ao longo do tempo. No início do século 20, havia um projeto para transformá-la em um sanatório para tratamento de tuberculose, que não saiu do papel. Nos anos 1990, chegou a circular a ideia de construir condomínios de luxo na ilha, com prédios de dez andares e áreas verdes, dando um “aspecto de primeiro mundo” ao local. O projeto gerou polêmica entre ambientalistas e urbanistas, e também não foi adiante.
Recentemente, em março de 2025, a ilha voltou ao noticiário quando uma força-tarefa identificou um homem morando em uma cabana improvisada no local. Dias depois, sete focos de incêndio foram registrados na vegetação seca, controlados rapidamente pela Defesa Civil e Corpo de Bombeiros. Os problemas voltaram quase de imediato, mostrando a dificuldade em manter o lugar protegido.
O nascimento de um clássico
A composição aconteceu entre 1982 e 1983, no mezanino da loja Kaos Brasilis, em São Paulo. Ciro Pessoa chegou ao local com três ideias no violão, uma delas inspirada em Roberto Carlos e sua música Quero que vá tudo pro inferno.
O processo criativo foi descontraído: cinco amigos (Ciro Pessoa, Marcelo Fromer, Tony Bellotto, Branco Melo e Carlos Barmac) bebendo, fumando e construindo uma letra que parecia debochada, mas era profundamente sincera. A palavra-chave “sonífera” veio da cabeça de Barmac. Dez versos, cinco compositores.
Do estúdio improvisado ao sucesso estrondoso
Inicialmente rejeitada pela gravadora EMI, que alegou que a música não tinha gancho, Sonífera Ilha quase não chegou ao público. Gravada às pressas no Áudio Patrulha, um estúdio minúsculo de 15 m² feito para jingles, nos intervalos de comerciais da Nescau e Sandálias Ortopé, a música teve produção amadora, mas ganhou vida através das harmonizações vocais características dos Titãs.
O sucesso veio por acaso: em agosto de 1984, o locutor Beto Rivera tocou a música na Jovem Pan sem autorização. Os ouvintes começaram a ligar pedindo para ouvi-la novamente, criando um efeito cascata que se espalhou por todo o país.
Um legado imortal
Sonífera Ilha tornou-se uma das músicas mais regravadas do Brasil, ganhando versões em axé, pagode e diversos outros estilos. Ciro Pessoa deixou os Titãs logo após o início do sucesso, buscando um som mais rock and roll, mas seu legado como poeta do rock permanece intacto.
A música continua viva, resistindo a todas as formações da banda e conquistando novas gerações. Tanto a música quanto a ilha real são lembretes de que alguns lugares, sejam eles físicos ou poéticos, devem permanecer preservados, selvagens e misteriosos.
A Ilha de Urubuqueçaba continua ali, verdinha e enigmática, talvez ainda inspirando novos artistas que passam pela orla de Santos. E “Sonífera Ilha” segue descansando nossos olhos, sossegando nossa boca e nos enchendo de luz, exatamente como promete seu refrão imortal.