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O Crime da Mala: o feminicídio de Maria Fea vive na memória de Santos

Quase 100 anos depois, a história da jovem italiana assassinada pelo marido ainda desperta devoção e relembra o peso da violência contra a mulher

Tempo de leitura: 6 minutos

No dia 7 de outubro de 1928, o movimentado Porto de Santos presenciou o início de um dos casos criminais mais chocantes da história brasileira. O transatlântico francês SS Massilia se preparava para partir rumo à Europa quando um acidente durante o embarque de bagagens mudou tudo. Ao içar uma mala pesada com o guindaste, os trabalhadores a deixaram cair junto com outras cargas. A batida abriu uma rachadura que espalhou um odor insuportável e um líquido escuro pelo cais.

www.juicysantos.com.br - O Crime da Mala a tragédia de Maria Féa que permanece viva na memória de SantosFoto: arquivo/AE

O delegado Armando Ferreira da Rosa chegou rapidamente ao local. Diante de dezenas de curiosos, ele mandou arrombar a fechadura e viu uma cena de horror: o corpo em decomposição de uma jovem loira, com os joelhos mutilados para caber no espaço. Dentro da mala, entre roupas de seda e perfumes derramados numa tentativa desesperada de disfarçar o cheiro, havia também um feto de seis meses. Assim nasceu o caso que a imprensa batizou como Crime da Mala.

A tragédia de Maria Mercedes Féa

A vítima era Maria Mercedes Féa, italiana de 21 anos, natural da cidade de Canelli. Em 1925, ela conheceu Giuseppe Pistone, de 31 anos, durante uma viagem de navio da Itália para Buenos Aires. Apesar da oposição da família, o casal se casou quando Maria completou 21 anos. Depois da lua de mel na Itália, decidiram tentar a vida em São Paulo.

www.juicysantos.com.br - mariafea

Maria desconhecia o passado criminoso do marido, que já tinha sido preso por estelionato em Mar del Plata. Em São Paulo, Giuseppe planejava enganar o primo fingindo ter dinheiro para investir no negócio de vinhos da família. Quando Maria descobriu o golpe, escreveu uma carta à sogra revelando os planos do marido.

Na manhã de 4 de outubro de 1928, Giuseppe encontrou a carta. A discussão que se seguiu terminou em tragédia. Ele sufocou Maria com um travesseiro no apartamento que o casal alugava na Rua Conceição, 34 (atual Avenida Cásper Líbero), no bairro da Luz.

O plano macabro

Durante três dias, Giuseppe manteve o corpo da esposa no quarto, sem saber o que fazer. Desesperado, traçou um plano cruel: colocaria o corpo em uma mala e o despacharia para a França usando nomes e endereços falsos. Para caber na bagagem, cortou os joelhos de Maria com uma navalha e quebrou seu pescoço.

Ele endereçou a mala a um destinatário fictício em Bordeaux e a embarcou no navio Massilia, que partiria de Santos. Giuseppe acreditava que o cheiro forte levaria a tripulação a jogar a bagagem ao mar durante a viagem. O plano falhou quando o cabo do guindaste se rompeu no porto.

A investigação avançou rapidamente, algo raro para a época. Depois de verem a foto da mala nos jornais, um comerciante reconheceu o objeto que tinha vendido dias antes, e um motorista de táxi se lembrou de ter transportado um homem nervoso com uma bagagem pesada da Rua Conceição até a estação de trem.

A polícia rastreou Giuseppe até uma pensão em São Paulo e o prendeu sem resistência. Durante o interrogatório, ele afirmou que apenas discutira com a esposa e que ela morrera de forma súbita. Confrontado com o laudo da autópsia, mudou a versão e disse ter encontrado Maria com um amante. Os vizinhos, no entanto, desmentiram o relato e contaram que ouviram a briga do casal na madrugada do crime.

Em 15 de julho de 1931, o tribunal condenou Giuseppe Pistone a 31 anos de prisão por homicídio e ocultação de cadáver. Ele cumpriu 22 anos e morreu em 1956.

A devoção que nasceu da tragédia

Maria Féa foi sepultada no Cemitério da Filosofia, no bairro Saboó, em Santos. O que parecia o fim de uma história trágica se transformou, com o tempo, no início de outra. A brutalidade do crime e o fato de Maria estar grávida comoveram profundamente a população santista.

Logo após o enterro, as pessoas começaram a visitar o túmulo, levando flores e velas. Com o passar dos anos, os relatos de graças alcançadas se multiplicaram. Em 1951, um casal que afirmava ter recebido um milagre construiu o túmulo atual, adornado por dois querubins. Trinta anos depois, em 1981, a comunidade inaugurou uma capela no local.

Hoje, quase um século depois, Maria Féa é venerada como uma santa popular. Seu túmulo é o mais visitado do Cemitério da Filosofia e recebe milhares de devotos todos os anos. As oferendas mostram a força da devoção: mechas de cabelo, sapatos de bebê, vestidos de noiva, placas de agradecimento e até bolos.

Muitas histórias circulam entre os fiéis. Dizem que Maria Féa ajudou um rapaz prestes a amputar a perna e uma mulher que sobreviveu a uma cirurgia cerebral considerada impossível pelos médicos, entre outras graças.

Um padrão que se repete

Infelizmente, o Crime da Mala não ficou no passado. Em setembro de 2025, quase um século depois, a Praia Grande presenciou um caso assustadoramente semelhante. Crianças que brincavam em um terreno baldio encontraram o corpo de Jane de Araújo Lima, de 46 anos, dentro de uma mala trancada com cadeado. A senha estava escrita em um papel ao lado.

O autor do crime, Atílio Ferreira da Silva, companheiro de Jane havia quatro anos, tentou dobrar o corpo da vítima para caber na mala, o que provocou fraturas graves. Jane havia contado às filhas que sofria agressões e temia ser morta.

Memória e alerta

A história de Maria Mercedes Féa continua viva em Santos, não apenas pela devoção popular, mas também como um lembrete doloroso da violência contra a mulher. Essa realidade persiste quase cem anos após sua morte. O Crime da Mala, em todas as suas versões, revela um padrão cruel de feminicídio que ainda tira vidas.

Enquanto flores e velas continuam acesas no túmulo de Maria Féa no Cemitério da Filosofia, sua história ecoa como um apelo por justiça e proteção às mulheres em situação de violência. A “santinha” de Santos, vítima de um crime bárbaro, tornou-se símbolo de resistência e esperança para quem busca força em meio ao sofrimento.