Por que o mito da mulher direita viola direitos das mulheres
É necessário
Reverter o feitiço.
Isso,
que apaga as mulheres
dos livros de história,
das esferas de poder,
das antologias.
Isso,
que as envolve entre quatro paredes
com apenas um anel.
Conheci esse poema da escritora feminista Guisela López, da Guatemala, no final da apresentação de um estudo sobre a realidade dos casamentos infantis no Brasil. Isso mesmo. Casamento infantil.
Estamos em uma vergonhosa quarta posição no ranking mundial, segundo dados do Unicef.
A pesquisadora colocou o texto no último slide, uma conclusão perfeita que resume muito aquilo que foi descoberto no levantamento (comandado pela Plan International Brasil, organização não governamental que trabalha pelos direitos das meninas e das crianças no mundo, e divulgado no final de junho).
As meninas que viram mulheres antes da hora
Existem lugares no Brasil onde meninas menores de 18 anos, muitas com idades entre 10 e 14 anos, encontram em uma união (formal ou não) o único caminho para diferentes fugas. Da fome, de famílias desestruturadas, em conflito, de violências, da condenação moral por desejarem viver a sexualidade. De nenhuma outra perspectiva ou escolha que pareça possível dentro do universo em que estão inseridas.
Uma boa parte acaba caindo, da mesma maneira, em relacionamentos cheios de desentendimentos, agressões, repressões, proibições para estudar e trabalhar. Relações marcadas pela desigualdade entre gêneros e por ignorâncias históricas e machistas.
Quando bati o olho no poema, lembrei de uma conversa que ouvi entre conhecidas, semanas antes. A velha história – e ainda assustadoramente presente – de que “sou infeliz, mas tenho marido” vence a escolha por uma vida autêntica para muitas mulheres.
Não mulheres na mesma situação de meninas que não conseguem enxergar uma saída na realidade em que estão. Mas mulheres com todas as possibilidades diante delas.
Qual é o valor de um anel?
Só eu fico perplexa com a ideia ainda tão forte na sociedade de que toda mulher precisa de um anel que comprova uma união para que ela tenha valor? Ou mesmo para se dar valor? Ou acreditar que seu valor depende disso desesperadamente?
Fiz uma pequena intervenção na conversa sobre ser infeliz mas ter marido reforçando que amor não é aparência.
Amor também pode sim trazer um lindo anel, cheio de sentimentos de verdade, às mãos de mulheres e homens. Mas não é a regra. Pode ser símbolo de enlace e celebração de algo especial. Não pode ser símbolo do que os outros vão pensar. Relacionamentos, casamentos ou não, são marcados por dificuldades e adaptações. Os que valem o esforço não são violentos, desrespeitosos, não geram infelicidade e, vejam só, solidão mesmo que alguém esteja na mesma casa todos os dias.
Mas sempre dá pra gente ficar ainda mais perplexa com as pessoas, né? “Ser escolhida ainda é importante, é um objetivo para a mulher, ela se destaca, é uma coisa direita”, foi o que eu ouvi. E não foi a primeira vez que ouvi, não. Ser escolhida pra ser infeliz? Não dá. Ser “direita”? E se destacar em que exatamente?
Enquanto mulheres tão capazes de viverem relacionamentos e histórias pessoais muito mais inspiradoras se contentarem em ser apenas “escolhidas”, de certa forma reforçada coletivamente a crença de que o casamento para uma menina é melhor do que nada. É melhor do que o pouco que ela já tenha. E, assim, as jogamos em situações de violações de seus direitos e que continuam dizendo que mulher “direita” tem que saber se colocar no seu lugar, tem que aceitar, tem que baixar a cabeça. Pra ser escolhida.
Muita tristeza e vazio pra carregar no peito por toda uma vida.
E que alívio não ser uma mulher “direita”.
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Suzane é santista e cofundadora da plataforma Mulheres Ágeis e da consultoria ComunicaMAG. É jornalista, mestre em sociologia, professora e escritora. É autora do livro “Tem Dia Que Dói – mas não precisa doer todo dia e nem o dia todo”. Mãe orgulhosa da vira-latinha Charlotte.