Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP
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literatura

Naquele tempo

Naquele tempo, eu morava com meus pais e minha irmã mais nova. Nossa casa ficava a menos de 20 passos do centro da cidade.

A insônia me perseguia nos piores dias, quando o barulho da rua de madrugada era um pesadelo.

Os vizinhos se alternavam entre barulhentos e amigáveis.

Nós, sempre contidos, ainda nos impressionávamos com os barracos no bar e a gritaria nas igrejas do quarteirão.

Logo na entrada, o pequeno quintal era espaço suficiente para a tartaruga exercitar as pernas. A cachorra cega cheirava o portão e latia para estranhos. O gato de olhos verdes caçava moscas e baratas.

www.juicysantos.com.br - crônica leandro marçal naquele tempo

Naquele tempo, as coisas não estavam fáceis, mas já haviam sido bem mais difíceis. Eu era um escritor falido e em começo de carreira, com dois livros publicados e alguns prêmios conquistados. Dois ou três sites davam espaço para minhas crônicas e eu me assustava quando, vez ou outra, me paravam na rua ou chamavam nas redes sociais para falar dos meus textos.

Pouco tempo antes daquele tempo, um trauma financeiro me fez desacreditar de tudo. De mim, principalmente. Perdi dinheiro e amizades, precisei voltar à terapia com alguma urgência. Eu me achava incapaz de tudo. Fiquei um bom tempo sem disposição para sair de casa. Comecei a pagar boletos escrevendo como ghost writer para blogs. Não havia muitos empregos fixos à disposição, virei freelancer na marra.

Naquele tempo, amadureci o suficiente para não ligar para muitas coisas.

Meu pai era um recém-aposentado, mas seguia trabalhando. À noite, se preocupava em encher um filtro de barro com água e deixar lá em cima. Morávamos em um sobrado antigo. Ele gostava da nova vida, com mais tempo para a família. Minha mãe era o elo da família e de tantos amigos que precisaram de sua ajuda. Conversava diariamente com minha irmã mais velha, recém-casada e morando a menos de 20 minutos de distância. Minha irmã mais nova penava com as mensalidades do último semestre da faculdade, mas fizemos o impossível para ela se formar.

Eu trabalhava no meu quarto e, no tempo livre, sentava no quintal, onde lia e sentia o ar da rua batendo na cara. Esperava as últimas horas do dia para lavar a louça e passar um pano na sala e na cozinha. Minha cachorra cega tinha incontinência urinária e molhava a casa toda. O cheiro era insuportável e motivo de piadas. Eu não ligava se não tinha um relacionamento e filhos, tentava viver um dia de cada vez e encontrar beleza em banalidades que viravam crônicas. E contos, e romances, e roteiros, e peças teatrais. Estava cansado das conversas com muita gente pouco disposta a ouvir o que me perturbava no período de frustrações seguidas. Até que passei a me dar bem com as frustrações e isso amadureceu minha escrita e personalidade.

Os 30 anos se aproximavam e desde os 20 e poucos tinha mais projetos que cabelos. Nos dias de crise de ansiedade, pensava naquele tempo de calmaria se desmanchando no ar. Ficava preocupadíssimo, uma hora tudo iria acabar e eu não saberia para onde ir. Sentia os batimentos cardíacos ao pensar no envelhecimento e a coisa piorava se a ideia de não viver muito. Quando a racionalidade voltava, lembrava que não temos controle de quase nada, mesmo, e parava de me cobrar pelo que estava fora de controle.

As pessoas corriam para lá e para cá, a comunicação era imediata, as respostas eram cobradas em poucos minutos depois das perguntas. Eu celebrava a calmaria, não alimentava expectativas e me sentia melhor assim. Fazia chacota dos especialistas, coaches e gurus. Vivia sem traçar metas para dali a cinco anos, tampouco planos para os meses seguintes.

Naquele tempo, a vida era múltipla, irônica e cruel, boa e ruim. De várias cores, de muitas formas. Eu buscava respeitá-la. Naquele tempo, as coisas eram como tinham que ser. E seguem sendo.

Era um bom tempo.