Texto porLeandro Marçal
Escritor e jornalista, Santos - SP

Meu amigo bateu na esposa

No meio do expediente, recebi uma mensagem.

Ignorei e continuei trabalhando. Mas o celular tocou de novo.

E de novo, e de novo, e de novo.

Eram áudios e fotos da esposa do meu amigo.

Fiquei assustado quando vi um olho roxo e o rosto arranhado. Tremi ao ouvir a voz trêmula. Não nos falamos há um tempo. Não nos vemos há mais tempo ainda.

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Meu amigo levou sua esposa, então namorada, ao barzinho sagrado de sexta-feira. Não muitas vezes, é verdade.

Jogávamos conversa fora, falávamos da vida adulta, reclamávamos de preços e patrões. Toda semana.

O barzinho era mesmo sagrado. Costume antigo, desde os primeiros salários. Nos tempos de solteiro, era comum ver meu amigo sair de lá acompanhado. Dizia, com sarcasmo, não ter culpa de ser dono daqueles olhos azuis. Dávamos risadas e pedíamos a saideira.

Meu amigo sempre foi bom amigo. Quando fiquei desempregado, ele fazia questão da minha presença. Pagava a cerveja e perguntava sobre as contas. A luz, a água, o telefone, tudo em dia? Queria saber da saúde da minha mãe, se interessava pela iminente aposentadoria do meu pai.

E finalizava dando conselhos: passou da hora de tomar um rumo na vida, ter um emprego estável, me firmar em um relacionamento duradouro. Eu ouvia como irmão mais novo.

Uns dizem que meu amigo mudou. Para outros, só mostrou quem sempre foi.

Quando a esposa ainda era namorada, ia ao barzinho sagrado de sexta-feira, como eu já disse. Começou a se enturmar e dar palpites. Até me apresentou uma amiga, com quem saí por um tempo. Meu amigo apertava os olhos quando a namorada falava. Em uma sexta-feira mais gelada, percebi uns cutucões por baixo da mesa quando ela riu mais alto, depois de umas caipirinhas. Até que nunca mais apareceu. Nem respondia no WhatsApp quando eu pedia notícias sobre sua amiga.

Meu amigo também parou de ir ao barzinho sagrado de sexta-feira. Notei um olhar estranho e os outros amigos pediram para ver as redes sociais. Eu também fui excluído pela esposa. Aliás, já era esposa e nenhum de nós foi convidado para o casório. Tudo bem, eu disse, a cerimônia deve ter sido só para os familiares. Quando me perguntaram, então, qual o motivo para ela ter nos excluído das redes sociais, não soube o que responder. Percebi que fui bloqueado no WhatsApp.

Ordens do meu amigo, cravaram. Não acreditei. Ele devia ter seus motivos para se afastar da gente, tentei ponderar. Sempre tem um folgado, um espaçoso. Tem gente que não gosta de muita liberdade, completei. Me olharam com desconfiança e pedimos a saideira. Das sextas, cada vez mais raras por ali. E do barzinho, cada vez menos sagrado.
Até esbocei uma alegria quando percebi que fui desbloqueado pela esposa do meu amigo. Mas segui assustado e tremendo.

O olho direito roxo, os arranhões na bochecha esquerda, a cara de medo. Não era possível que o meu amigo, o dos olhos azuis, o das companhias depois do barzinho sagrado de sexta-feira, o que me perguntava da água, da luz, das contas, da saúde da minha mãe e da aposentadoria do meu pai, fosse capaz de uma violência daquele tipo.
Era mais que possível, ela respondeu.

Fui obrigado a concordar com a realidade. Triste realidade. Disse a meu chefe que precisava sair mais cedo por uma emergência familiar. Não dava para continuar trabalhando. E ainda não sei bem o que fazer.