Texto porLudmilla Rossi
Santos
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Quando as minhas curvas deslizam mais que os patins

Sábado de tempo encoberto em Santos e lá estava eu em mais um dia de progressão da minha retomada em cima das quatro rodas dos meus patins. Meu marido e eu pegamos nossa bike e fomos até a pista do Emissário Submarino evoluir um pouquinho na arte de deslizar puerilmente vestidos pelo corpo de adultos.

Fábio* também decidiu fazer o mesmo. Em quase todas as vezes que fomos patinar, ele estava por lá trabalhando. Fábio dá aulas com uma maestria técnica impressionante, geralmente para crianças e adolescentes que querem se aprimorar sob as rodas. Fiquei curiosa sobre as aulas dele, afinal isso poderia acelerar meu aprendizado e logo perguntei como funcionava. Fábio me passou o WhatsApp e sugeriu que marcássemos um horário.

As  aulas que nunca chegaram

Nem me apressei, afinal meu objetivo era apenas deslizar e me divertir, retomando uma prática esportiva que conviveu comigo bons anos na infância. Alguns dias depois escrevi para Fábio, que logo depois do “oi” e de responder a minha única pergunta (sobre os horários) me mandou uma avalanche de fotos, medalhas e conquistas de sua carreira. Na hora eu não entendi bem porque havia recebido aquela avalanche de material sem solicitar e até passou pela minha cabeça que ele confundiu as pessoas. Os horários não bateram e segui minha vida. Fui novamente patinar na manhã seguinte acompanhada do meu marido e de uma amiga.

No dia seguinte às mensagens Fábio estava no mesmo local dando aulas. Quando ele acabou uma aula impecável com a aluna, me cumprimentou e eu puxei um papo inocente: “como estão seus horários? Queria ver se você tem disponibilidade, tenho algumas dúvidas especialmente sobre o meu freio, que estou achando baixo demais…”.

Fábio começou a proselitizar dizendo que “não importava”, afinal aquilo não “era um freio” pois os patinadores profissionais “param com o corpo”. Completou que aquilo na verdade era usado por patinadores que saltam. Completou com a frase: “coisa que você não vai fazer”.

Ok, por mais que eu não tenha a recente intenção de saltar – que espécie de intimidade teria Fábio comigo para me dizer o que eu quero ou posso fazer? Achei uma abordagem pouquíssimo empática para um professor que está acostumado com crianças e apenas fiquei com aquela sensação interna de “acho que esse cara não entendeu a minha pergunta.”

A vida seguiu e patinei bastante no carnaval de 2018, enquanto Fábio rodopiava com outros alunos. A maioria crianças. Só vi um adulto tendo aula uma vez. Apesar de ter achado Fábio nada empático e com uma abordagem bem descolada dos tempos atuais, eu não havia eliminado a possibilidade de ter aulas com ele (como sou inocente às vezes, meu Jesus).

Até hoje.

Tomei a decisão de não fazer aulas com Fábio. Simplesmente porque eu tive que intervir numa conversa com Fábio e os pais de uma criança linda. Quando cheguei, Fábio dava aula para duas garotinhas iniciantes na arte de patinar. Não sei se eram irmãs, primas, mas faziam aulas juntas. Novamente Fábio ensinava de maneira impressionante e as crianças repetiam seus movimentos com certo talento.

Patinando na maionese vencida

Quando acabou a aula, Fábio liberou as meninas deixando-as patinarem livres, sentando-se ao lado da família. Pelo que entendi a mãe, o pai e uma tia. Os vi conversando durante várias voltas que dei na pista. Porém, no momento em que os eixos cartesianos dos meus ouvidos e das cordas vocais de Fábio se cruzaram eu ouvi a palavra bariátrica. Tentei entender qual era o contexto da conversa e comentei com meu marido: “Não pode ser ele indicando cirurgia bariátrica para uma criança de no máximo 12 anos, né?”. Como eu não tinha certeza do contexto, só fiquei pensando que minha mente estava criativa demais. Afinal não poderia ser que um professor de patinação estivesse esbarrando em disciplinas tão ligadas à medicina pediátrica.

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Continuamos patinando quando uma garoa fina começou a ameaçar o encerramento da diversão da molecada. Fomos pegar as bikes, que estavam no poste ao lado de onde Fábio e os pais das meninas conversavam. Não dava para não ouvir.

Principalmente, não deu para não reagir.

Fábio comenta: “o problema é pão e pizza demais”.

E cometeu o ato que fez meu pavio incendiar inteiro.

Fábio pegou carinhosamente a barriga da garotinha e disse:

– Olha a quantidade de pizza que tem aqui, você tem que emagrecer para patinar melhor. Olha ela (a outra garotinha), como ela consegue ser mais leve e fazer mais coisas que você – enquanto fingia ser um adipômetro humano, apertando a garota com seu polegar e seu indicador.

O mundo parou por alguns segundos. Mas não o suficiente pra eu ficar quieta. Lancei:

– Isso que vocês estão fazendo com essa criança é uma forma de violência. É cruel. Vocês estão sugerindo que uma criança emagreça para ser capaz de fazer uma coisa que ela já é capaz de fazer.

Um silêncio inesperado surgiu e acho que até a chuva deu um tempo para saber como aquilo acabaria. Fábio ignorou minha fala e continuou dizendo para a menina e os pais o quanto era importante emagrecer. A mãe complementou dizendo que a menina adorava pão e que iria no pediatra. Não era culpa da mãe, afinal certamente ela só estava repetindo hábitos que aprendeu, reforçados pelo professor cheio de autoridade e charme nos movimentos. Ninguém ali parecia ter más intenções, apenas pessoas mergulhadas no status quo dos padrões de beleza dos anos 80 ou 90.

O pai da menina, quieto, me pareceu o que poderia estar mais aderente ao recado que eu gostaria de dar. Cheguei mais perto e notando certo constrangimento da parte dele, comecei:

– Moço, não deixe que NINGUÉM, ninguém mesmo diga a sua filha que ela precisa emagrecer ou que é incapaz de fazer alguma coisa porque precisa perder peso. Esse tipo de abordagem ou de crueldade verbal não estimula nenhuma criança a emagrecer. Pelo contrário, só gera mais ansiedade, depressão e esvaziamento – que pode caminhar pra compulsões diversas. Não é a toa que temos tantos adultos em depressão, sentindo-se incapazes de fazer coisas que eles poderiam fazer.

Até então o professor havia ignorado tudo que eu falei. Mas resolveu respondeu.

– Eu sou técnico dela e sei o que eu estou falando. Ela precisa sim emagrecer. Uns seis quilos, no mínimo.
– Você pode ser técnico mas não é médico – respondi.
– Sou um profissional com 30 anos de X, Y, Z, medalhas de Z, Y, Z – e mais uma série de credenciais que seriam irrelevantes para discutir pediatria.
– É justamente desse tipo de experiência que tenho medo – respondi e continuei – o tempo passa rápido demais, quando vemos o mundo mudou e a gente nem viu.

Estava todo mundo levantando para ir embora por conta da chuva e nesse momento aconteceu a cena mais triste desse rolê.

A garotinha, que eu gostaria de ter poupado de assistir uma conversa daquele nível se dirige à mim e diz: “tia, eu preciso emagrecer sim, pra ser melhor”.

Juro que isso cortou meu coração.

Quantas vezes a menina, linda e com um leve sobrepeso deve ter sofrido bullying na escola para realmente acreditar que emagrecer precisava fazer parte de sua “agenda”? Quantas vezes ela pode ter ouvido brincadeiras “inocentes” de adultos sobre comer demais ou não arrumar namorado no futuro? O bullying de outras crianças na escola – geralmente são filhos de atitudes adultas incorporadas por crianças reproduzindo misoginia, gordofobia e em alguns casos racismo (quantas meninas não sofrem com as brincadeiras sobre seus cabelos crespos?).

Ano passado esse artigo foi publicado no The New York Times baseado num estudo da universidade Duke – que afirma que a gordofobia implícita está para as crianças com idade entre 9 e 11 anos assim como o preconceito racial está para os adultos (se você é do time que defende que o Brasil não é racista e que a terra é plana, sinceramente não sei como você chegou até aqui – mas desejo sorte).

Desse artigo a frase que mais me marcou foi que a obesidade é uma forma de preconceito socialmente aceita e os obesos são por consequência os alvos aceitáveis desses estigmas. O artigo do NYT termina com a seguinte afirmação: “Todos nós precisamos nos afastar da cultura focada na aparência e nos padrões e reconhecer que existem outras coisas que importam muito mais do que como a pessoa aparenta ser em relação ao seu peso”.

Veja só que não sou eu que estou afirmando nada disso, é uma universidade americana renomada que fez um estudo científico sobre o assunto – antes que alguém diga que tudo isso é um mimimi e que nenhuma criança deveria ser gorda. Eu não estou aqui defendendo maus hábitos alimentares e nem estimulando o sedentarismo infantil mantendo uma criança refém de hábitos que ninguém deve ter. Mas acho um absurdo uma criança, em pleno ano de 2018, estar rodeada de opiniões que reforçam estereótipos e preconceitos travestidos de “preocupação com a saúde”.

Colocar o emagrecimento como uma agenda prioritária na vida de uma menina de 10 ou 12 anos de idade é dar a ela o recado que o mundo não é dela – e  só será quando ela emagrecer ou atingir um número que um terceiro colocou como seu objetivo. Eu não olhei os exames da garotinha e eu não faço ideia do seu estado atual de saúde, mas o fato de empoderar a garota para praticar esportes, sem compará-la ao modelo de criança magra como  “melhor” já traria uma abordagem menos violenta para a questão do emagrecimento.

Mil novecentos e noventa e um (kilos)

Saí do embate na pista arrasada pela frase da garota e aliviada por não ter deixado uma situação dessa passar batido. Se o professor de patinação parar para refletir, o embate já terá um valor e tanto.

Eu voltei para casa tentando resgatar meus momentos na patinação quando eu tinha um professor no começo da década de 90. Lembro pouco dele, mas lembro da postura, da disciplina e que ele não deixava as meninas tirarem o patins até a aula de todas acabarem.

Fiquei tentando lembrar dos momentos de plena exibição desse professor, onde ele apresentaria o progresso de suas alunas para os pais e familiares.

Resgatei uma foto antiga de uma apresentação da qual participei, não apenas como parte do casting mas fazendo a abertura do show.

Fiquei contente de perceber, mais de duas décadas depois que esse professor não quis esconder uma aluna que não era magra. Uma aluna grande, recheada, gordinha, com pizzas espalhadas pelo seu corpo, sem nunca sequer ter pego em minha barriga dizendo o número de pizzas que moravam ali.

Ou mesmo sem tentar convencer minha mãe que eu precisava emagrecer.

ludmilla-patinacao-1991Na foto eu e meu pai, num clube de patinação em Salvador, Bahia. Meados de 1991.
Depois do show, os pais puderam experimentar como era patinar, num baita exercício de empatia.

Não sei você, mas a cada dia que passa e com tudo que aprendo fica mais insuportável assistir certas violências não intencionais serem cometidas de camarote. A falta de consciência nessa fase de transição do mundo nos mantém longe de acompanhar o zeitgeist.

Se a gente não acompanha o espírito do nosso próprio tempo fica mais fácil cairmos no erro de mantermos um ciclo de erros que devem morar no passado. Quem não quer pensar muito – ou não quer abrir mão de nenhum privilégio – costuma manifestar sua própria preguiça intelectual em três sílabas: mimimi.

Alguns dizem que “o mundo está ficando chato”. E eu sempre gosto de responder que “o mundo já é chato faz tempo pra gays, mulheres, negros e qualquer outro grupo não supremo de poder na sociedade”.

Eu torço para que os pais dessa menina não apoiem nenhum tipo de interferência verbal violenta no corpo de uma criança menos de uma dúzia de anos vividos. Se alguns quilos a mais dão direito a um homem tocar no assunto de uma bariátrica para uma criança, eu gostaria de desamarrar o cadarço do meu patins e descer do mundo.

Mas eu continuei em pé, deslizando com as minhas próprias curvas – e fui capaz pelo menos por hoje – de não permitir que gordofobia implícita (e extremamente desnecessária) virasse mais uma piadinha: “Vê se não come pizza quando chegar em casa, viu?”.

Eu pressentia que aquela conversa acabaria nesse tipo de humor. Por um instante preferi lanchar uma pseudo-supremacia com bastante queijo.

Espero que quando alguém decidir ser o adipômetro humano do Emissário Submarino, faça isso de maneira sussurrada. Eu não vou ouvir quieta qualquer groselha nesse sentido – enquanto eu estiver deslizando minhas curvas naquela pista com meu patins de glitter.

Mais do que meninas preocupadas com 5 ou 6 kilos a mais, precisamos de mulheres livres para saltarem – por mais que continuem achando que elas não são capazes de fazer isso.

Antes que eu me esqueça do que dizia Simone de Beauvoir: querer ser livre é também querer livres os outros.

* Os nomes foram trocados para preservar as pessoas e não causar nenhum tipo de violência digital com os envolvidos.

Se você quer estudar um pouco mais sobre o tema desse post, indico esse postcast.