Plano de Passagens de Santos, uma solução possível para a mobilidade urbana
As galerias do Gonzaga fazem parte da identidade de Santos. Você certamente já passou por uma delas enquanto encurtava um caminho que seria mais longo pela rua. É comum associá-las ao comércio, pelas lojinhas quase sempre presentes, mas elas são fundamentais para a mobilidade urbana da cidade.
Existe uma relação direta entre as galerias e o trânsito cada vez pior de Santos. As galerias incentivam a população a caminhar e pedalar. E, como elas encurtam distâncias, as pessoas pensam duas vezes antes de usar um veículo motorizado e enfrentar o trânsito. Fica mais fácil ir a pé. Em larga escala, isso ajuda a desafogar o fluxo dos carros e ônibus nas ruas. Você já tinha pensado nisso?
O impacto delas na circulação da cidade pode ser tão grande que, em 2019, Santos aprovou um Plano de Passagens como parte de seu Plano de Mobilidade Urbana. O plano, inclusive, foi escolhido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo como boa prática em Arquitetura e Urbanismo, em 2022. E o Plano de Passagens de Santos foi selecionado como exemplo a ser adotado pelo Plano Diretor de SP, no evento SP23.
O Plano de Passagens de Santos já está aprovado, mas sua implementação ainda não teve sucesso. Um dos grandes fatores para isso é a falta de conhecimento do público.
Em dia 29 de junho de 2023, houve uma audiência pública na Câmara de Vereadores para debater e propor alterações necessárias na lei. A pressão dos cidadãos é essencial para garantir que a prioridade da cidade seja das pessoas e não dos imóveis.
José Marques Carriço, arquiteto e urbanista, doutor em planejamento urbano e regional, fez parte da equipe técnica que elaborou a lei e abaixo explica um pouco mais sobre ela.
Um plano para uma Santos mais caminhável
Visando incentivar o caminhar pela cidade, com aumento geral da possibilidade de cruzar o tecido urbano, em 2019, Santos aprovou um Plano de Passagens como parte de seu Plano de Mobilidade Urbana. Trata-se da Lei Complementar nº 1.087/2019.
Este Plano, infelizmente pouco divulgado, já foi reconhecido, em 2022, como boa prática pela seção paulista do Conselho de Arquitetura e Urbanismo. E, em 2023, serviu como referência para a revisão do Plano Diretor de São Paulo, no Fórum SP23.
Pelo seu caráter inovador, o Plano também foi tema do movimento Jane’s Walk Santos de 2020, quando a pandemia obrigou sua realização do evento online.
Baseado na experiência de outras cidades e em estudos aprofundados de técnicos da Prefeitura de Santos, o Plano de Passagens de Santos mapeou quadras com mais de 300m de extensão, facilmente contornáveis por veículos motorizados, mas desestimulantes ao percurso a pé, como mostra a figura abaixo:
Assim, o Plano prevê a implantação de passagens através dessas quadras, que poderão ser cruzadas mais rapidamente, em rotas menos dependentes do sistema viário convencional, saturado de veículos e interferências de todo tipo (figura abaixo).
Essa possibilidade é fundamental para o estímulo do caminhar e do pedalar, pois muitas vezes pedestres e ciclistas optam pelo transporte motorizado por causa da distância a percorrer.
São previstas passagens interligando ruas pelo miolo de bairros, onde a tranquilidade é propícia à circulação desprotegida, a pé ou de bicicleta. Essas passagens ampliarão o alcance das ruas locais, sem aumentar trânsito de automóveis e poluição sonora, já que apenas pedestres e em alguns casos ciclistas poderão circular pelas passagens, que também protegem as pessoas dos riscos que o intenso tráfego urbano oferece.
Ao privilegiar a mobilidade ativa (sem motorização), estimula-se outra relação com o espaço público, como espaço vivencial, possibilitando apreender a paisagem como construção coletiva de grande diversidade.
Entenda melhor o Plano de Passagens de Santos
A proposta atinge de terrenos vagos a imóveis já construídos, não passíveis de grande alteração. Frente a tal diversidade, a lei traz três tipos de passagens: de renovação urbana, de conversão e de consolidação.
As 43 “passagens de renovação” urbana incidem em 64 imóveis passíveis de receber novas construções ou grandes reformas (22 deles públicos), onde a lei condiciona a aprovação de novos edifícios e grandes ampliações à abertura de área térrea com características de calçadão atravessando o empreendimento. O espaço, com piso idêntico e nivelado ao da calçada, deverá em geral possuir no mínimo 6m de largura e pé direito duplo, se coberto. Em geral, procurou-se situar as passagens de renovação junto a divisas laterais dos lotes, propiciando iluminação e ventilação naturais, como nos calçadões ao ar livre, moderando o impacto no aproveitamento dos terrenos.
Finalizada a obra, a passagem a passagem de renovação será de uso público todos os dias das 7h às 20h, no mínimo, período de maior movimentação de pedestres.
A lei prevê que o espaço sirva, também, para permanência, com lojas e espaços sociais requeridos em parte do percurso. Em contrapartida, a área consumida pela passagem poderá ser construída em andares adicionais, no mesmo ou em outro terreno, dispensada a oferta de vagas para automóveis no empreendimento com a passagem. Após a obra, a lei prevê desconto no IPTU, de até 50% se adotado funcionamento 24h.
As 21 “passagens de conversão” afetam 26 imóveis construídos nos quais uma grande transformação é improvável ou até vedada, a exemplo de condomínios da orla marítima e de edifícios tombados, respectivamente.
Nesse tipo, com parâmetros arquitetônicos menos exigentes que os da “renovação urbana”, há estímulos para implantar calçadão em áreas livres do imóvel, como recuos laterais (figura abaixo). Em 16 imóveis particulares afetados, a conversão é voluntária e reversível, permitindo desconto no IPTU, vinculado ao funcionamento das 7h às 20h (25%) ou 24h (50%), sendo a conversão obrigatória em 10 imóveis públicos.
As 14 “passagens de consolidação” são voltadas à preservação de circulações já abertas ao público em 16 imóveis, na maioria galerias comerciais construídas em centralidades como o bairro Gonzaga (figura abaixo). Tais circulações não poderão ser eliminadas, nem reduzidas, devendo ser reimplantadas em caso de substituição das edificações que as contém. Já a adequação desses espaços a parâmetros do sistema de passagens, como sinalização e equipamentos, será voluntária e renderá desconto de 50% no IPTU por um ano. Após a obra, a adoção de funcionamento 24h garantirá desconto renovável de 25%.
Ao contrário das vias públicas tradicionais, as passagens dispensam desapropriação, mas requerem cuidados especiais para o uso público ocorrer naturalmente e sem constrangimentos. Nesse sentido, a lei proíbe controles de acesso, grades e portas de vidro no período de uso público, estabelecendo, para as passagens de renovação, que tanto seu piso quanto seu regramento de conduta sejam iguais aos das calçadas públicas, para o pedestre não ser constrangido por estética ou regra de uso especial que comprometa a finalidade pública do espaço.
Compreender a importância ambiental e social desse plano de passagens de Santos é estratégico para o futuro da qualidade urbana. Vivemos em uma cidade cada vez mais congestionada com motos e automóveis que disputam freneticamente espaço em via pública, tornando o caminhar e o pedalar atividades cada vez mais arriscadas. Daí ser fundamental conhecer e defender nosso Plano de Passagens.