Entre dois séculos: uma história do Clube de Regatas Saldanha da Gama
Quando soube da demolição de parte das instalações do Clube de Regatas Saldanha da Gama, não consegui evitar a nostalgia que me leva a exercícios de memória.
Foto: Tiago Gomes/grupo Neocaiçarismo
Fui sócio-atleta por dois anos, na virada da década de 80 para os anos 90. Defendi, como goleiro, o time de futsal do clube. O Saldanha chegou a ser o melhor time infanto-juvenil da Baixada em 1990 e até hoje guardo, com carinho, uma das camisas de goleiro que vesti naquela época (e que, claro, não me serve mais como veterano aposentado).
Voltei inúmeras vezes ao Saldanha. Assisti por quatro vezes à festa junina da Mariana, minha filha, nas quadras do fundo do clube. No mesmo lugar, vi a estreia do Vinicius, meu filho, como dançarino caipira, no ano retrasado.
No começo da vida universitária, lá para 1992, passava pelo menos uma manhã por semana jogando tênis com os velhinhos.
Eu e meu amigo Paulo Coelho – não o escritor, mas o administrador de empresas – usávamos somente uma carteirinha para entrar no clube. A dele. Até que um dia fomos descobertos porque um dos porteiros achou que o Paulo tentava entrar com uma carteirinha cuja foto não se parecia com ele. Recebi o documento de volta, pelas mãos de um diretor, que recomendou que eu – o então Paulo – parasse de jogar tênis naquele clube de graça.
A única vez que remei na vida foi num caiaque na sub-sede do clube, localizada na praia de Santa Cruz dos Navegantes, em Guarujá. Também fui em diversos aniversários e ensaios de apresentação da escola dos meus filhos no salão de festas, de frente para o mar.
Foto: Almanaque Esportivo de Santos
Confesso que soube da venda de parte das instalações do Saldanha há mais de dois anos. O clube não está sozinho. As marretas e máquinas que hoje transformam paredes em ruínas representam uma mudança de mentalidade, tanto do público como dos dirigentes, sobre o papel dos clubes em Santos.
Vender parte do terreno que abrigava a sede foi a maneira de equacionar dívidas trabalhistas, fiscais e bancárias. Ainda sobrou dinheiro para modernizar as dependências, como fez o Vasco da Gama e o Brasil Futebol Clube, que se alimentam de novas fontes de receita. Outros se uniram, como o Caiçara e o Clube dos Ingleses, para compartilhar eventos e custos.
Os clubes, neste século, perderam parte de sua função social. Foram trocados por academias, condomínios fortificados, shoppings e versões parecidas de lazer. Os sócios pagantes são uma espécie em extinção. Quem ficou virou sócio remido, que não paga mensalidade e não gera receita.
Os esportes migraram para escolinhas e o futebol para as quadras de society. Saudades dos torneios internos nas manhãs de domingo, que incendiavam o campo grande com pés descalços, da molecada aos veteranos.
Leia mais
Saldanha da Gama no site Novo Milênio
Despedi-me do velho Saldanha no final do ano passado. E da melhor maneira que poderia dizer adeus: jogando futebol no campo grande.
Descalços, ralando as pernas a cada defesa ou gol sofrido.
Naquela tarde de sábado, joguei com velhos companheiros de futsal e adversários dos tempos de adolescente. Também pude estar ao lado de amigos de tempos recentes, que dividem as peladas em campos de futebol society, outra modernidade do século XXI.
Depois do jogo, um churrasco no tradicional bar do clube, onde prevaleceram as conversas sobre futebol, de hoje e de ontem. Na hora de registrar a despedida, o paradoxo que simboliza o contemporâneo: um dos jogadores trouxe uma máquina fotográfica polaroid. “Digital é o caralho!”, ele disse antes das gargalhadas.
O papel de fotógrafo sobrou para um dos adolescentes que acompanhavam os pais peladeiros. Após o clique, surgiu o problema: como compartilhar a imagem? Os celulares deram conta de fotografar a fotografia.
As contradições entre as ruínas da saudade e a modernidade das marretas estavam ali, na imagem de um clube que entrou em cirurgia plástica para rejuvenescer. O Saldanha ficará parecido com o irmão Vasco, possivelmente. Talvez seja o preço para viver mais um pouco, com ou sem multidões de sócios.
Marcus Vinicius Batista é jornalista e autor do livro de crônicas “Quando os Mudos Conversam” (Realejo Livros).