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Um jogador argentino na praia de Santos

As negociações duraram um mês. Parecia caso de necessidade e, por isso, acertar todas as bases do acordo provaria que a contratação era de suma importância, a ponto de ressuscitar o defunto depois de dez anos.

Só mesmo meu cunhado para me retirar de uma aposentadoria confortável, sem dores musculares ou promessas de vitória.

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O nepotismo partiu dele. Fernando me garantiu, sem ter visto partida alguma, que eu resolveria parte dos problemas defensivos do time argentino. Como seria recebido como estrangeiro? Como seria recebido por jogadores com a metade da minha idade, muitos deles com corpo e aparência para serem meus filhos?

A doceria Brunella era a referência geográfica para os jogos, não o patrocinador. Os recursos vieram de outra empresa do ramo alimentício, o Bar do Maneco, que bancou parte do jogo de camisas e das traves.

Um time com origem internacional tinha que evoluir do gol caixote para as traves grandes. E essa evolução implicava na contratação de um goleiro. Aí entro eu, aos 41 anos!

Além do patrocínio, o Bar do Maneco tinha mais vínculos afetivos com os jogadores. O estabelecimento tem sua matriz às margens do BNH, na Aparecida. É ali que residem a maioria dos atletas, muitos fregueses de refrigerantes e outras bebidas.

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Para eles, melhor se apropriar do alemão Schalke 04 e o espanhol Real Madrid do que Cruzeiro ou Corinthinhas (no diminutivo mesmo!), clubes que enfrentei quando tinha 12, 13 anos, em campeonatos regionais de futsal.

As cláusulas contratuais verbais indicavam que eu não poderia treinar. A meninada estuda de manhã e treina à noite, na praia. Eu trabalho durante o dia e dou aulas à noite. Jogaria apenas nos finais de semana. Ótima saída para quem precisa de dois, três dias de recuperação após cada pelada. Se treinasse durante a semana, seria ausência na certa no sábado ou no domingo.

Nos últimos 10 anos, havia me tornado um jogador de futebol society. Campo menor, mais gente de cabelo branco e joelhos operados, menos tempo de corrida, mais cerveja, petiscos e conversa sobre futebol, trabalho e filhos. Definitivamente, outro esporte.

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Voltar ao futebol de praia reviveu parte da minha cultura litorânea. A dinâmica do jogo reacendeu as memórias de quem era uma ratazana da faixa de areia. Jogos quase todos os dias, com o filé mignon aos sábados e domingos à tarde. Os clássicos entre Roberto Sandall e Trabulsi, duas ruas na Ponta da Praia, que muitas vezes resultaram em correria para não apanhar e amnésia sobre o resultado da partida.

Os contras, como são chamados os jogos (nada) amistosos, envolviam adversários como o pessoal do Colégio Carmo, muitos deles hoje parceiros de futebol society, cerveja, resenhas e tal. Havia os festivais, com diversos jogos ao longo do dia. Eu atuava até no time dos zeladores da minha rua, um jeito arretado de jogar futebol, mas jamais violento ou desleal.

No começo do mês passado, fiz minha estreia pelo River Praiano, outra celebração de uma equipe estrangeira, talvez sintomático pela forma aguerrida de jogar. Como resumiu meu cunhado, “só pegaria”.

A partida era fora de casa – em frente à Pinacoteca Benedito Calixto -, e o adversário também tinha nome gringo, mais voltado para o futebol americano: Bull Dogs. Perguntei três vezes para ter certeza da nomenclatura surreal. Para o primeiro jogo, nada de sustos. 3 a 0.

Na semana seguinte, novo convite. Oponente com nome de seleção europeia: Montenegro. A caminhada de um quilômetro entre minha casa e a faixa de praia onde aconteceria a partida, além de aquecer o corpo, esquentou a nostalgia. Um campo depois do outro, no final da tarde de sábado, muitos deles ligados às barracas, outros improvisados com pedaços de pau como traves.

Passei a adolescência toda jogando na areia dura, perto do canal 6. Fora a molecada da rua Roberto Sandall, os amigos de praia, sujeitos que não precisávamos conhecer passado, família, profissão, escolaridade, comprovante de residência e CPF, rezavam pelo mesmo código de Ética, de partidas que acabavam ao anoitecer e cujo resultado seria esquecido antes do encontro da semana seguinte. Gente como Arakem (não o showman que saltitava na Globo em época de Copa do Mundo), Mineiro, o falecido Índio e Salvador, o único que sabíamos a profissão: professor de Geografia.

O River Praiano venceu novamente: 3 a 2 sobre Montenegro. Era a hora, acreditava-se, de enfrentar o carrasco dos últimos meses. A diferença não era somente técnica, o nome era exclusivamente nacional.

O Águia Negra havia sapecado 7 a 2 em setembro. Desfalques, me disseram alguns, para justificar a goleada.

Na semana passada, novo encontro, dois dias antes do Dia de Finados. Em tese, relação alguma com o futebol. No primeiro tempo, suportamos o 1 a 0 até os 44 minutos, quando levamos o segundo gol. Uma “dura” no vestiário a céu aberto e quatro substituições. O massacre veio na segunda etapa. Gols espíritas (aqueles que nem o autor acredita e, por isso, credita a uma entidade), gol contra, falhas individuais e coletivas. 9 a 3 e silêncio.

Quando deu o relógio, veio o sinal de novos tempos. Goleada nas costas, eu só queria ir embora. Muitos insistiam em continuar, dos dois lados, pela diversão. Eu disse para um deles: “tenho mulher em casa. Preciso ir.” Ele me respondeu sorrindo, na experiência de 16 anos de idade. “Eu não!”.

Mais tarde, caminhando ao lado da mureta do canal, conversava com dois ou três jogadores. A derrota havia sido esquecida e a preocupação se dividia entre o primeiro emprego e o vestibular. Direito ou Educação Física? Entrar na Marinha ou continuar como estagiário?

Ali, percebi como é fascinante a cultura do futebol de praia. O resultado fica para trás, enquanto seguem vivas as angústias que possuía, aquelas que brotavam no começo da década de 90.

Sugeri que marcássemos novamente com o Águia Negra, para se aprender com o adversário.

Último conselho. Minha vida como goleiro de um time falsamente argentino terminou ali. Aposentado, outra vez.

Marcus Vinicius Batista é jornalista e autor do livro de crônicas “Quando os Mudos Conversam” (Realejo Livros).