Operação Tom e Jerry: quando Santos trocou ratos por gatos na praia
A história inusitada de como o maior jardim de praia do mundo virou refúgio felino nos anos 1980
Se você acha que os desafios urbanos de Santos são novidade, vale respirar fundo. Afinal, a cidade já viveu uma das histórias mais inusitadas do País, a famosa Operação Tom & Jerry.
Foto original: Prefeitura de Santos/arte feita com IA
Nos anos 1980, o então prefeito Oswaldo Justo teve uma ideia, no mínimo, peculiar para enfrentar a infestação de ratos na orla. Em vez de veneno ou armadilhas, ele resolveu espalhar centenas de gatos pelos jardins da praia. Assim, o que começou como uma proposta ecológica rapidamente virou um caso nacional e transformou a paisagem da cidade de forma inesperada. Spoiler: deu zebra. Ou melhor, deu gato.
O legado sujo da ditadura
Para entender a Operação Tom & Jerry, é preciso voltar um pouco no tempo. Durante a ditadura militar, Santos ganhou fama de “Moscou brasileira” por causa de sua resistência política. Como castigo, a cidade perdeu sua autonomia e ganhou um prefeito nomeado, o general Clóvis Bandeira Brasil.
Desde então, a gestão ficou marcada pelo abandono. Sob censura, a imprensa quase não conseguia noticiar que a cidade afundava na sujeira. Enquanto isso, os ratos se multiplicavam livremente, quase como uma rave de roedores. Para piorar, a solução adotada pela administração beirava o absurdo. Funcionários enterravam os ratos mortos na areia da praia, muitas vezes diante de banhistas horrorizados.
Apesar de o general alegar ter exterminado mais de 210 mil ratos entre 1971 e 1973, a verdade é que ele perdeu a batalha. Os roedores continuaram dominando o maior jardim de praia do mundo, são 5,3 km de extensão contínua, recorde reconhecido pelo Guinness Book. Medalha de ouro em jardim de praia, medalha de bronze em controle de ratos.
Justo e sua solução “exótica”
Em 1984, com a redemocratização, Santos finalmente pôde escolher seu prefeito novamente. Oswaldo Justo, que havia se recusado a tomar posse na época da ditadura (um “não, obrigado” histórico), venceu as eleições. E uma de suas primeiras missões foi clara: expulsar os ratos que dominavam a orla.
A denúncia que acendeu o estopim veio em 27 de novembro de 1986. Funcionários da Prodesan (empresa responsável pela limpeza urbana) ainda estariam enterrando ratos na areia. Justo não teve papas na língua:
“Se eu pegar ou souber que algum funcionário da Prodesan está enterrando ratos na praia, eu enterro ele junto”, declarou ao jornal.
(Calma, pessoal, era força de expressão. Ninguém foi enterrado. Pelo menos não que a gente saiba.)
Mas a solução do prefeito foi ainda mais surpreendente. Defensor da ecologia antes de ser cool, Justo era contra o uso de raticidas químicos, que poderiam matar pássaros e outros animais. Inspirado por uma senhora de 76 anos que levava seus seis gatos para caçar ratos na orla, ele teve uma ideia:
“Como defensor da ecologia não aceito esta prática. Sou a favor do equilíbrio ecológico e, portanto, do uso de gatos para matar os ratos”.
Basicamente, o prefeito decidiu resolver o problema com a lógica do desenho animado. E deu nome à coisa toda.
A operação entra em ação
Depois de testes discretos entre os canais 1 e 2, Justo decidiu partir para o ataque total em maio de 1988. Durante uma de suas famosas “reuniões da madrugada”, o prefeito deu a ordem: “Espalhem gatos pelos jardins de toda a praia”.
A justificativa era quase poética:
“A natureza é uma roda dentada, que gira encaixada. Quando um dos dentes falta, os problemas começam a surgir. No caso dos jardins da praia houve uma quebra no equilíbrio ecológico. Vamos colocar gatos para acabar com eles. Afinal, o predador do rato é o gato!”
A imprensa batizou a iniciativa de Operação Tom & Jerry, em alusão ao clássico desenho animado. E o que parecia loucura começou a dar resultado: os ratos sumiram de vários trechos da praia. Ponto para o time felino!
De heróis a vilões: o efeito colateral
O sucesso inicial da operação foi tamanho que Justo ganhou destaque nacional, chegando a posar para foto na capa do Jornal do Brasil. A população abraçou a causa. A orla virou um grande gatil a céu aberto.

Foto: memória santista
Mas a divulgação do plano trouxe um problema inesperado: muita gente começou a abandonar seus gatos na orla, achando que estavam prestando um serviço público. Em pouco tempo, as manchetes mudaram: “A praia de Santos já tem dono: os gatos!”
Para organizar a bagunça felina, o prefeito tomou medidas inusitadas:
- Mandou construir seis abrigos de madeira pintados de azul e vermelho (cores da Prefeitura) com o logotipo PMS — porque até gato público precisa de moradia funcional
- Orientou a Guarda Municipal a impedir que pessoas alimentassem demais os felinos — afinal, gato gordo não caça
- Criticou publicamente os “gatos gordos” que perdiam o interesse em caçar (imagina a manchete: “Prefeito chama gatos de vagabundos”)
Um vereador chegou a sugerir que os gatos recebessem coleiras de identificação, “como servidores públicos a serviço da Prefeitura” — proposta que virou piada na cidade. A comparação entre gatos e funcionários públicos não agradou ninguém. Nem os gatos, nem os funcionários.
O fim de uma era
Quando Justo deixou a prefeitura em 1989, a Operação Tom & Jerry era considerada um sucesso absoluto. Os ratos haviam desaparecido, os gatos se integraram à paisagem, e a população aprendera a proteger os felinos. Missão cumprida, gatinhos!
Mas a nova prefeita, Telma de Souza, não via as coisas da mesma forma. Culpando os gatos por um surto de bicho geográfico (larva migrans) nas praias, ela encerrou a operação. Os felinos começaram a ser capturados pelos funcionários do setor de apreensão de animais e levados para o Canil Municipal. De heróis a desempregados em questão de meses.
A indignação foi geral. Muitos acusaram a administração de matar os animais apreendidos. Após pressão da Associação de Proteção aos Animais, os gatos foram enviados ao Horto Municipal, onde ficaram em abrigos especiais até serem adotados. Aposentadoria felina garantida.
O legado felino
Em 2004, ainda havia entre 250 e 300 gatos vivendo na orla de Santos, descendentes diretos ou indiretos da Operação Tom & Jerry. A cidade implementou programas de castração e vermifugação para controlar a população felina. Porque, né, gato se reproduz mais rápido que rato quando bem alimentado.
No fim das contas, a Operação Tom & Jerry virou símbolo de uma época. Um período em que Santos, recém-saída da ditadura, voltou a expor seus problemas e buscar soluções criativas. Mesmo que fossem, no mínimo, exóticas.
Entre heróis e vilões, os gatos deixaram sua marca. E provaram que, às vezes, a solução menos óbvia muda a história de uma cidade.
E que gato, definitivamente, não é funcionário público.