Texto porSuzane G. Frutuoso

Dores do aborto: não, você não tem direito de julgar

Das muitas bizarrices que assolam as redes sociais dia sim, dia também, uma chamou em especial minha atenção esta semana. O post mostrava a foto de um filhote de cachorro e outra, a imagem de um bebê em formação na barriga da mãe. Cada uma com as seguintes legendas:

Matá-lo é? Crueldade (na foto do cachorrinho)
Matá-lo é? “Direito” (na foto do bebezinho)

O post é de uma página católica e suscitou aquele bate-boca sem fim dos que defendem e dos que condenam o aborto.

E, claro, alguns depoimentos foram capazes de mostrar o pior do ser humano.

Muitos alegavam que aquele era um post que pedia a valorização do ser humano (tão valoroso ultimamente, né?). Apesar de achar que tudo bem matar por matar um outro tipo de vida que não a humana.

www.juicysantos.com.br - abortoArte: Emma Plunkett

Duas histórias de aborto

A copeira de uma editora onde trabalhei durante um ano, logo no começo da minha carreira, chegou um dia chorando muito. Acabara de descobrir a quarta gravidez.

Soluçando, ela dizia que não era que não quisesse o filho, que não amasse os outros três. Mas, mais uma vez, era um filho que viveria em condições de pobreza, de um futuro que a ela parecia tão incerto. Para piorar, era resultado de mais um estupro. O estuprador era o próprio marido, que depois de beber até perder a cabeça, fazia sexo com ela à força enquanto também dava socos em seu rosto. Ainda entre lágrimas, disse que tentava pegar o anticoncepcional no posto de saúde do bairro onde morava na periferia de São Paulo. O problema é que nem todo mês o medicamento chegava. Quando não tomava a pílula, fazia de tudo para fugir do marido. Nem sempre conseguia. Ela permaneceu só mais um mês no trabalho. Nunca mais soubemos dela.

www.juicysantos.com.br - dores do aborto

Três anos depois, uma amiga querida me chama um dia para um café. Pediu para conversar. Assustei quando a vi tão abatida na mesa mais escondida de uma confeitaria no Gonzaga. Parecia não dormir há dias. Sentada, ombros encolhidos, quase sem força para erguer a cabeça, contou que tomou um medicamento abortivo semanas antes. Desandou a chorar, desesperadamente. Segurei sua mão. Pedi que se acalmasse. Que se não quisesse falar sobre aquilo, tudo bem. Se quisesse, eu ouviria sem julgar. Quando contou ao então ex-namorado (nunca gostei dele, inclusive) que estava grávida, ouviu:

“Dá um jeito porque eu não vou ser pai agora, não tenho nada que assumir. Você que deveria ter se cuidado.”

Sumiu. Foi para a cidade do interior onde morava. Nunca mais voltou para manter o relacionamento à distância. Nunca mais a procurou, fosse para saber como estava, fosse para saber se levou a gravidez adiante. Ela é uma das pessoas mais doces e generosas que conheço. Longe, muito longe, de ser um monstro sem coração. Adora crianças. Mas se viu, naquele momento, frágil, vulnerável, desamparada. Segurando a onda de uma depressão da mãe. Fez uma escolha, que também evitou qualquer ligação futura com um cara que não valia nada.

Não. Você não pode julgar a mulher pobre de periferia, que não sabe o dia de amanhã e que enxerga no aborto a única saída. Uma mulher que tantas vezes vive num mundo agressivo e miserável. Você não pode dizer que tem anticoncepcional gratuito, fácil de retirar ali no posto de saúde perto da praia, desconsiderando que em regiões violentas das cidades serviços são comprometidos. Incluindo a chegada de pílulas e camisinhas. Ou comprometidos também pela corrupção que desvia dinheiro de ações de saúde.

Aliás, você acha mesmo que a mulher que é forçada ao ato sexual tem alguma condição de exigir o uso da camisinha ao homem que a violenta? Pense novamente.

Dar o filho para a adoção é uma possibilidade, claro. Mas sabia que mulheres que entregam os filhos para a adoção legal e voluntária são alvo de preconceitos? Prejulgadas, desqualificadas, tratadas como indignas e merecedoras de cadeia? São relatos que juízes ouvem nos tribunais.

É um direito da mulher entregar o bebê para a justiça. Não é um crime, não a leva à prisão. Pelo contrário. Mas há quem faça questão de amedrontar ao máximo a mulher que toma essa decisão dizendo que se ela der o filho vai presa. Não é nem para abortar e nem para entregar para a adoção. É para lidar com as consequências de “abrir as pernas por aí”, como muitos dizem.

Em geral, gente que se considera muito decente – e se der uma procurada mais a fundo descobrimos que sonegam impostos, são antiéticos, desonestos, mentirosos, puxam o tapete dos outros, manipulam, caluniam, transformam os dias de quem os cerca em um inferno, entre outras grandiosidades. Gente muito decente mesmo. Exemplos da moral e dos bons costumes.

E não. Você não pode julgar a mulher que tem condições financeiras, mas não emocionais, de decidir interromper a gravidez. Você não pode dizer a ela o que é certo a partir da sua realidade. Muito menos chamar de criminosa alguém que já enfrenta um sofrimento profundo. Que tipo de pessoa é você? Ou pensa que é? Quanto em nome de Deus tantos falam, mas não têm Deus em suas ações?

Conheço mais ateu que faz alguma coisa pela comunidade em que vive, ações concretas que melhoram a sociedade, do que quem bate ponto na cerimônia religiosa de domingo, seja da religião que for.

Vamos falar também do homem que desaparece quando descobre uma parceira grávida? Isso também é abortar um filho. Abortar o papel de pai e sem jamais sofrer consequências no corpo ou na justiça.

Vamos falar, ainda, da nossa educação sexual, por favor? Castradora e amedrontadora em tantos casos, que faz do sexo um pecado, uma sujeira, quando na verdade é um prazer saudável. Para falar de sexo com jovens tem, sim, que dizer que é gostoso. Exige cuidados contra doenças e a gravidez indesejada. Nem sempre é romântico e o começo é mais para atrapalhado. É uma descoberta de sensações e tudo bem nem sempre rolar porque um dos dois não tá a fim ou não conseguiu. Que garotas precisam se masturbar para descobrir as capacidades do próprio corpo, assim como os garotos. Abstinência? Não me faça rir alto.

Ninguém é a favor do aborto. Eu não abortaria. Mas essa é uma decisão só minha e formada a partir da realidade em que vivo, que serve para mim. Não um exemplo a ser seguido. Uma mulher não pode, porém, ser criminalizada por uma das decisões mais difíceis de sua história pessoal.

Aos que vivem no mundo de Alice, preciso contar mais uma coisa. Tão óbvia. Mas vamos lá: legalizado ou não, o aborto continuará existindo. Para quem tem dinheiro, em uma clínica na qual receberá cuidados. Para quem não tem, sangrando no chão do banheiro após um comprimido que é quase veneno ou agulhas de crochê colocadas no fundo da vagina até o útero.

Legalizar o aborto, vejam só, é salvar a vida de muitas mulheres. Inclusive que já são mães e morrem ao se submeterem em desespero ao aborto clandestino.

Tem tanta coisa difícil acontecendo no mundo para colocar energia e ajudar.

Crescimento dos índices de suicídio.

Pessoas obrigadas a deixarem suas pátrias por guerras ou desastres naturais.

Tantos sendo escravizados em trabalhos indignos para outros tantos consumir desenfreadamente.

Gente passando fome e frio na rua. Animais também.

Tanta mão estendida num pedido de socorro. E vocês aí, ocupados demais em cuidar das decisões que não lhes cabem.

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Recomendo fortemente a entrevista Mãe e católica, médica assume o principal serviço de aborto legal do país, com a ginecologista Alessandra Giovanini, coordenadora do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, em São Paulo. Concedida à jornalista Natacha Cortêz e publicada na última quinta-feira na editoria Universa do Uol. Crianças e adolescentes são a maior parte das pacientes. A média de idade é 13 anos, mas é comum receber de 10, 11 anos. O estuprador é sempre próximo: pai, padrasto, avô, tio, um amigo da família. Em segundo lugar estão mulheres atacadas nas ruas, quando geralmente o agressor é um estranho.

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Suzane é santista e cofundadora da plataforma Mulheres Ágeis e da consultoria ComunicaMAG. É jornalista, mestre em sociologia e escritora. É autora no blog Fale Ao Mundo e lançou o livro “Tem Dia Que Dói – mas não precisa doer todo dia e nem o dia todo”. Mãe orgulhosa da viralatinha Charlotte.