Texto porVinícius Alves Souza

A metamorfose: por que decidi tirar um sabático após vencer um tumor

“Meu querido neto, você é tão avançado para sua época. Aqui é uma cidade pequena, com mentes pequenas. Você terá que sair daqui”.

Lembro-me como se fosse hoje quando a minha avó sussurrou estas palavras ao pé do meu ouvido ??

Muitos anos mais tarde, quando abri os olhos, era perto das 20 horas. Trajava um avental de centro cirúrgico e sem goles de sonhos. Acordava na UTI após um sono induzido por anestésicos.

Já se vão um pouco mais de dois meses desse dia. Era 8 de fevereiro de 2019 quando encostei as costas num pilar do hospital a esperar a primeira internação.

Até então, contava eu que os dias seriam iguais a todos os outros, com os olhos a contemplar a água a seguir seu curso perene no rio. Mas não temos domínio sobre os planos feitos. Não se imagina a dor no futuro. Era o que me dizia naqueles dias.

O diagnóstico

Em fevereiro deste ano, fui diagnosticado com um tumor em medula cervical, o qual, acreditava-se, era o responsável por um grande edema na medula, chamada mielite. Segundo todos os especialistas afirmavam, a resolução era cirúrgica. Eu, que aguardava um diagnóstico mais ordinário, esperançoso em folha, vivenciei poucas semanas depois uma embriaguez imoral.

O único defeito irresoluto que poderia remover o preço à vitória, que eu não deixaria de obter, custasse o que custasse, seria não colocar em vida o maior desafio: desposar todas as entranhas peles que usamos para nos camuflar e nos aproximarmos de fato ao que somos. Ou nos transformaremos no inseto monstruoso kafkaniano.

Viver a sua autenticidade não deve ser mais doloroso do que ter duas vértebras cerradas e um bisturi a cutucar a medula.

Fui viver

Dias depois, levantei-me resoluto, embora ainda com dor e 23 dias após a neurocirurgia, estava dentro de um avião a minutar uma vida nova e magnífica. E, como ainda tenho a caneta na mão, decidi desenhar o mundo ?

www.juicysantos.com.br- : eu na Ponte Carlos, em Praga?: eu na Ponte Carlos, em Praga

Em Praga, entrei em conexão com João Nepomuceno, o qual foi morto e torturado por não trair a rainha ao se negar fofocar as confissões que ela fazia a ele. Morto por ser fiel… ?

Foi neste momento que lembrei o que minha avó havia me dito sobre “mentes pequenas”. Passei comovido pela Ponte Carlos, a mais antiga de Praga e local em que Nepomuceno foi aniquilado.

Não era a primeira vez que refletia a sós sobre a importância em ser leal consigo mesmo. Agora, porém, estava a sós, num país distante do meu e os meus grandes tormentos tornaram-se imaginativos. Cada um imputa em seu Prédio Dançante o medo que quiser.

Que minha avó estivesse disposta a me alertar sobre algo que enfrentaria no futuro, não ouso afirmar, mas creio que tivesse certa inclinação visionária e que achasse em mim alguma coisa bonita que somente tempos mais tarde passei a enxergar.

A vida não é o Relógio Astrônomico de Praga, o qual existe desde 1410 e a cada hora, as portas se abrem e os 12 apóstolos se movimentam rotineiramente. Afinal, uma hora o relógio para, o tempo não. E perder tempo é estragar a vida – pronunciou Kafka, escritor e antigo morador de Praga.

Cheguei ao ponto de crer e ser fiel à visão deturpada que o redor tem o costume de embutir em nós. Ouvia calado e vexado. Mas ao ser fiel ao que os outros pensam de nós, nos despimos a eles. E uma vez num banheiro de hospital, a sós comigo, despido e com dor, chamei-me tolo. Afinal, temos a tendência em não despir a nossa verdade afim de demonstrar fidelidade aos mesmos traiçoeiros olhos que mataram Nepomuceno.

Em suma, caí sem tropeçar após o diagnóstico recebido, não me dissipei fisicamente, como me pareceu assustador, mas moralmente desdobrei-me ainda mais, um lado me dizia “você está indo no caminho certo”, outro me fez lembrar de minha avó “você é tão avançado para sua época”. No fim dos cabos, convido todos a nos despirmos à nossa fidelidade e quando a última peça de roupa cair lembremos que temos olhos pretos, sob a vigia de falsas mentiras brancas, no entanto, somos a cor que quisermos ser, o tempo todo, feito os ovos coloridos pintados à mão em Praga.