Um livro para minha mãe
A menina loira pegou o livro pela grade, sorriu como se recebesse o brinquedo mais desejado do Natal e disparou em direção ao salão de festas. As outras três crianças a seguiram também aos berros.
Como uma criança poderia se encantar naquele momento com um livro para adultos? Um livro de contos que falava de temas pesados, como exploração da terra e das pessoas que trabalham nela.
A maior vantagem é que a menina desconhecia o conteúdo. Não pela qualidade, mas por amor a uma causa maior, a literatura. Ou à própria mãe! Ou ela talvez soubesse, na minha divagação idealizada, que a mãe dela precisava ler aquelas histórias naquela fase da vida. O que sei era que o fascínio vinha pelo livro em sim, não a paixão pela capa, mal vista diante da excitação infantil, mas o amor que se constrói há anos pelo objeto-livro.
A menina não olhou para trás, manteve os saltos firmes e gritou:
“Manhêêê!!! Ganhei um presente para você!”
Trinta segundos antes, voltávamos eu e Beth de uma Feira do Livro. Trazia uma caixa de papelão no ombro direito, forma mais fácil de carregar uns dez livros, fruto de trocas, presentes e vendas não realizadas. Passávamos em frente ao Edifício Costa Blanca, ali na esquina do canal 5 com a rua do Sesc.
O prédio faz muro, aliás, com o Sesc.
Para mim, é um daqueles prédios estilo Alphaville, que tenta reproduzir de maneira falsa o cotidiano dos condomínios fechados numa cidade plana e litorânea. O edifício, para mim, era o endereço do jogador Arouca, quando ele atuava no Santos, a residência de uma amiga da minha irmã e possuía uma fonte de água que sempre molhava as mãos do meu filho Vinicius.
Quando estava em frente ao salão de festas, afastado da rua por uma grade, quatro crianças pararam de brincar e vieram em minha direção. Colocaram as mãos na grade branca e uma delas, loira, me perguntou:
“Tio, o que tem nessa caixa? Dinheiro?”
“Não, são livros.”
A menina morena falou de bate-pronto: “Livros são a riqueza do mundo.”
Beth, que caminhava dois metros à frente, parou e sorriu.
A menina loira cortou a amiga, olhou de novo para mim e pediu:
“Tio, me dá um livro?”
“Para com essa mania de incomodar as pessoas”, reclamou a menina morena.
“Olha, não posso te dar um livro. São livros para adultos.”
A menina loira tinha, como uma criança normal, resposta para tudo.
“Tio, quero dar um livro para minha mãe. Tem o Dia das Mães.”
Tirei a caixa do ombro e coloquei em frente à cintura. Olhei para os livros e depois para Beth. Ela apenas sorriu, consentindo a doação. Retirei, da caixa, o livro “Viração”, seis contos escritos pelo meu irmão André Rittes. Passei o livro pela grade e o entreguei para menina loira.
Ela tomou o livro nas mãos e começou correr gritando pela mãe. Eu me virei para a Beth e, após um sorriso, disse: “Você já sabe, né?”
Recebi dela a confirmação pelos olhos e retomamos a caminhada para casa. “Crônica, né?”
Ao fundo, os gritos: “Manhêêê! Ganhei um presente para você!”