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Tá tudo bem, mas tá esquisito

Há uns três ou quatro anos, vi uma frase pichada em um muro que era assim:

Tá tudo bem, mas tá esquisito

Muros são sábios. Sábios e sorrateiros: pegam a gente de surpresa e nos obrigam a olhar pra coisas que estávamos fazendo um bom trabalho em ignorar.

Com sua concisão certeira, obrigam a gente ao pensamento mais duro e realista. Era exatamente aquela a sensação indefinida que nublava o meu cotidiano. As coisas objetivas iam bem, trabalho legal, vida pessoal legal, tudo legal, mas… (e eu não sabia o que colocar depois desse mas).

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Os muros me entendem. Ano passado, li mais uma frase que clareou aquilo que eu estava sentindo sem nem saber que sentia. Dizia: “Não tenho espaço para tanto vazio”. Muros são sábios. Nossa vida é permeada de vazios. Nem tudo faz sentido, e aquilo que não conseguimos explicar ocupa um espaço dentro de nós que marca, invariavelmente, uma falta. A distância entre o eu e o outro é um vazio. A distância entre dois átomos é um outro vazio. Entre a experiência e o significado, mais vazio.

É claro que há também preenchimentos: as dores, os prazeres, aquilo e aqueles que amamos; sonhos, conquistas, descobertas. Em cada momento histórico, o que nos preenche muda de cara, de propósito e também de intensidade. Em todos os tempos, porém, vazios e preenchimentos se buscam e se anulam, tentando chegar ao equilíbrio. E, quando não chegam, mesmo que esteja tudo bem, continua esquisito.

Nosso tempo parece ser de mais vazios do que conseguimos dar conta. Gilles Lipovetsky, filósofo contemporâneo, fala do século 21 como sendo “a era do vazio”.

www.juicysantos.com.br - we all need loveFoto: Javier Ramos para Unsplash

Muro e livro parecem concordar que há uma dificuldade grande para atribuir significado à vida pós-moderna. Os vazios são tantos que já não encontram espaço dentro da gente. Tá tudo bem, mas.

E é aí que entra a arte: na tentativa de preencher esses abismos de sentido.

“A arte existe porque a vida não basta”, diz o poeta Ferreira Gullar.

Livros, filmes, músicas, fotografias vão ajudando a tampar um buraquinho desse vazio existencial que todo mundo, em algum momento, sente. É uma possibilidade segura de dar um pause na realidade imediata, sem estar louco, delirante ou chapado.

www.juicysantos.com.br- escapar da realidade

Seja para fugirmos da realidade (com sagas de fantasia ou comédias non sense) ou para lidarmos com ela (com aventuras distópicas ou tramas sociais realistas), as narrativas participam desse movimento de busca por algo que possa ultrapassar a experiência concreta de vida.

O crítico e ensaísta Antonio Candido considera que a literatura é o sonho acordado do homem. Para ele, assim como não conseguimos deixar de dormir, também não resistimos a 24 horas sem fantasiar. Nesse sentido, a literatura é tão essencial para a sobrevivência e a sanidade quanto o sono.

Estamos vivendo um momento estranho, em que o cotidiano às vezes parece mais inverossímil que a arte mais surrealista. Se estamos na era do vazio, se há tanta falta de sentido que não temos mais espaço para acomodar tanto esvaziamento de experiência, se mesmo quando está tudo bem as coisas continuam esquisitas – então precisamos, muito, da literatura.

E mais: precisamos também da fantasia.

Precisamos de respiros para continuar de pé. Como aquelas pontes de concreto que, se não tiverem um espacinho de quando em quando, podem rachar e ruir. Precisamos da ficção para nos mantermos sãos e livres e lúcidos. E, assim, termos energia suficiente para seguir adiante, encarar a vida e mudar o que precisar ser mudado, sem fugir ou enlouquecer ou fechar os olhos.

Ler ficção, então, é um ato de resistência. Resistamos.

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