O roubo do século em Santos: como o advogado negro Luiz Gama desvendou esse mistério
Podia ser uma série de mistério da Netflix, mas é apenas mais um capítulo da história do Brasil que se passou aqui na nossa cidade. O roubo do século em Santos não é ficção. E a gente conta esse caso aqui…
O mistério
Em 1877, um crime audacioso chocou o Brasil imperial: 185 mil contos de réis, uma fortuna equivalente a R$ 20 milhões de hoje, foram roubados sorrateiramente do cofre da Alfândega de Santos. O dinheiro guardado nesse cofre – adquirido pelo governo como “impossível de ser roubado” – tinha como origem os impostos pagos por empresários do ramo do café.
A investigação do caso, inicialmente atribuída à polícia, tomou um rumo absolutamente inesperado quando o renomado abolicionista e advogado Luiz Gama assumiu a defesa do principal suspeito: o tesoureiro Antonio Eustachio Largacha. Homem branco de origem espanhola, Largacha acabou preso sob a acusação de ter cometido o crime. Isso porque era o único que tinha a chave do cofre.
Largacha tinha uma reputação boa em Santos e foi até vereador na cidade. Aliás, nessa época, Santos vivia um boom no cenário econômico brasileiro, por conta do Porto de Santos, que já estava no início da fase de porto organizado. Sim, éramos a Wall Street brasileira.
Doutor Gama
Aqui, cabe uma pausa na história para exaltar Luiz Gama (1830-1882).
Advogado negro e abolicionista, ficou famoso por sua inteligência e sagacidade. Ele libertou centenas de negros escravizados utilizando seu profundo conhecimento das leis brasileiras.
Gama não acreditava na culpa do tesoureiro e estava determinado a provar sua inocência quando assumiu sua defesa.
Dessa forma, desmascarou uma farsa cuidadosamente elaborada. O cofre “impossível de ser arrombado” foi aberto com uma chave micha, e o telegrama enviado com detalhes do crime antes mesmo da investigação oficial levantava sérias dúvidas.
A cena do crime
Para a polícia, as provas contra Largacha eram contundentes.
E essa foi a sequência do assalto, segundo a polícia:
- o tesoureiro guardou o dinheiro e foi embora. Horas depois, retornou ao prédio da Alfândega de Santos – já vazio
- tentou abrir o cofre com uma chave micha, mas não conseguiu
- usou a própria chave para tirar o dinheiro
- teria mexido nas telhas e espalhado uma série de objetos pelo local para fingir uma invasão de alguém vindo de fora, situação que o tiraria do rol de suspeitos, porque, em tese, ele não precisaria dessa encenação para levar o dinheiro.
Porém, Gama, conhecido por sua perspicácia, mergulhou de cabeça na investigação, contestando as inconsistências da acusação.
Sua análise meticulosa dos fatos, incluiu mais de 200 depoimentos, laudos técnicos e até mesmo reportagens internacionais. Gama visitou Largacha na antiga Cadeia Velha (foto), no prédio que ainda existe na Praça dos Andradas. E acreditou em sua inocência.
E quem roubou?
O advogado apontou como autores do crime um trio de homens poderosos e influentes: o engenheiro Luiz Manoel de Albuquerque Galvão, o serralheiro Adolpho Sydow e o imigrante alemão Rodolpho Wursten.
O serralheiro havia sido contratado, meses antes, para fazer uma manutenção no cofre da Hobbs & Co. E, por isso, sabia como funcionava.
Já a dupla Luiz Manoel de Albuquerque Galvão, empreiteiro rico e conhecido na cidade, e seu sócio e amigo, o imigrante alemão Rodolpho Wursten, estava executando uma obra no prédio da alfândega. Este segundo era também jornalista e correspondente do Jornal do Commercio (RJ) em Santos. E, na manhã de segunda-feira imediatamente após o crime, mandou um telegrama ao jornal dando detalhes do assalto, como a exata quantia levada. Porém, essas informações só foram descobertas pela polícia depois.
“Como Wursten poderia saber o valor do assalto antes mesmo da própria polícia tomar conhecimento do caso?”, questionou Gama.
Para o advogado, os três formavam uma quadrilha que planejou e executou o roubo. Gama dizia, ainda, que o trio conhecia muito bem o prédio e o funcionamento do cofre “impenetrável”.
Com a investigação de Luiz Gama, Largacha finalmente ganhou a liberdade após 10 meses preso. Os acusados, porém, fugiram antes de serem processados. Descobriu-se que, três dias após o roubo, o alemão e o empreiteiro embarcaram em um navio em Santos com destino ao Rio de Janeiro. O dinheiro nunca foi recuperado.
O que aconteceu depois?
O caso Largacha do roubo do século em Santos consolidou a reputação de Luiz Gama como um advogado brilhante. Apesar de nunca ter sido recuperado, o dinheiro roubado expôs a hipocrisia da sociedade da época. E esse foi o maior acontecimento do gênero no século XIX.
Quem redescobriu esse enredo típico de thriller hollywoodiano foi o historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutor em História e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha. Em 2023, o fato virou matéria na BBC.
Se você quer saber mais sobre Luiz Gama, sua obra completa está disponível online. E o Museu Afro Brasil, em São Paulo, dedica uma sala à sua vida e carreira. No Carnaval carioca de 2024, Gama recebeu justa homenagem quando virou tema da Escola de Samba Portela.