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O que a rodoviária de Santos diz sobre a nossa cidade?

Sempre que passo pela rodoviária de Santos sinto uma angústia sobre o tamanho da nossa negligência com o design em um ponto de alta concentração e formação do imaginário da nossa cidade. É certo que a rodoviária ganhou um bom upgrade em 2020 e do ponto de vista de conforto térmico, percepção de segurança e usabilidade, a coisa melhorou. Inclusive, escrevemos sobre a reforma da rodoviária de Santos logo após a sua conclusão.

Mas fico olhando os detalhes e pensando: porque não incluímos design nas nossas escolhas? E por que não temos um design que é capaz de contar as histórias que queremos manter vivas?

Souvenirs na rodoviária de Santos

O design é uma força dinâmica que pode desafiar o status quo e impulsionar mudanças. Quando aplicamos esta visão ao contexto da rodoviária de Santos, percebemos que não estamos apenas diante de um problema estético, mas de uma oportunidade perdida de utilizar o design como ferramenta de transformação social e cultural. De criar momentos de chegadas e partidas em um lugar promotor da cidade. Estamos falando de portal de entrada para uma das mais importantes cidades litorâneas do Brasil, que perde a oportunidade de reforçar sua identidade em um local de alto fluxo e atenção. Também falamos de uma das rodoviárias mais antigas do nosso país, inaugurada em 1969. Uma das mais longevas em operação contínua no nosso país, perdendo em termos de idade apenas para o Rio de Janeiro e Governador Valadares.

A ausência de uma atitude de design consciente neste espaço público revela muito sobre como percebemos e valorizamos nossas infraestruturas urbanas.

Por exemplo: você sabia que antigamente, no local ocupado hoje pela a rodoviária de Santos, ficava uma vila residencial que teve como morador ninguém menos que o poeta Martins Fontes? E que, apesar de ter sido inaugurada por um interventor federal em Santos (Clóvis Bandeira Brasil), desde 1996 a rodoviária passou a se chamar Terminal Jaime Rodrigues Estrella Júnior, destacando um personagem da cidade que combatia ferrenhamente a ditadtura militar?

Esse espaço da cidade é tão importante que chegou a virar um mini-documentário (Des)embarque”, documentário que faz parte do projeto cultural “Rodoviária de Santos, 50 anos de histórias”.

 

O documentário tem autoria de Nicole Zadorestki Caroti (co-direção, fotografia e edição), Wagner de Alcântara Aragão (co-direção, argumento e roteiro) e Gabriel Cordeiro Ramos (áudio) e falando sobre a trajetória de Jayme Rodrigues Estrella Júnior, o Cebola, a luta pela democracia, a história da televisão e memórias afetivas. Todas estas histórias (des)embarcam na Estação Rodoviária de Santos.

Tempo suficiente para pensar diferente

O projeto inicial da rodoviária não foi apenas uma solução funcional para o transporte intermunicipal, mas também uma declaração arquitetônica que demonstrava a ambição de Santos em se firmar como uma cidade moderna e progressista. A estrutura representa um importante patrimônio do modernismo brasileiro na cidade, embora, como apontado anteriormente, tenha perdido parte de sua força simbólica e estética ao longo dos anos devido à falta de manutenção adequada e atualizações que respeitassem sua concepção original. Inclusive muitos arquitetos e urbanistas criticam a reforma mais recente sob essa ótica.

O terminal representa um importante capítulo na história urbanística da cidade, tendo sido concebida durante a gestão do prefeito Silvio Fernandes Lopes na década de 1970. Lopes, que governou Santos entre 1969 e 1973, é frequentemente lembrado como um administrador com visão progressista para o desenvolvimento urbano da cidade. Sua administração foi marcada pela criação da Prodesan (Progresso e Desenvolvimento de Santos S/A), uma empresa de economia mista que revolucionou o planejamento urbano local e tornou-se responsável por diversos projetos estruturantes. O próprio prédio da Prodesan, na Av. Ana Costa é também um marco arquitetônico na cidade, que faz parte do nosso design urbano.

Construção da Rodiviária de Santos

Este período coincidiu com o movimento da arquitetura brutalista paulista, que estava em seu auge, caracterizado pelo uso expressivo do concreto aparente e por soluções estruturais arrojadas. Arquitetos de renome da vanguarda paulista foram convidados a participar deste e de outros projetos em Santos, trazendo para a cidade litorânea as influências estéticas e conceituais que já transformavam a capital do estado. Estes profissionais, formados na tradição modernista e influenciados por nomes como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, implementaram em Santos edificações que dialogavam com as novas tendências arquitetônicas nacionais. A rodoviária, com suas grandes estruturas de concreto e amplos vãos, exemplificava essa estética e colocava Santos na vanguarda da arquitetura pública brasileira daquele momento.

Como a gente pula desse pensamento estético de vanguarda, para uma lógica de design tão incompatível com a história do ambiente?

Rodoviária de Santos, março de 2025
Do detergente diluído no banheiro aos souvenirs das lojas, da sinalização das companhias ao conforto visual, porque não partimos do ponto onde todo mundo, independente da sua classe social, repertório cultural, profissão ou momento de vida, pudesse viver o que o design entrega de melhor: ser invisível.

Tony Fry, em seu trabalho sobre “Design Futuring”, diz que os espaços que criamos não são apenas contentores físicos, mas manifestações materiais de nossa visão de mundo e prioridades sociais. A rodoviária, comunica que Santos é uma cidade dos anos 90, através dessas fotos que tirei em 2025.

Alice Rawsthorn, é um nome que me impactou muito com seu Design como Atitude. Ela reforça que design não é apenas uma disciplina técnica ou estética, mas uma atitude – uma forma de abordar e resolver problemas com criatividade, empatia e responsabilidade social. Segundo ela, o design genuíno surge de uma postura interrogativa e crítica frente à realidade. A rodoviária de Santos exemplifica o que acontece quando essa atitude de design está ausente: temos espaços que funcionam no nível mais básico, mas falham em inspirar, conectar ou comunicar valores positivos.

Por que nossa barra é tão baixa?

Em um momento em que cidades globais competem pela atenção e investimento, a qualidade de experiência dos espaços públicos torna-se um diferencial estratégico.

E por que será que a nossa barra é tão baixa?

Esta baixa barra de design tem consequências profundas no imaginário coletivo da cidade. Os espaços urbanos formam imagens mentais que influenciam como percebemos e nos relacionamos com o ambiente. Uma cidade que não investe em qualidade de design em seus pontos de entrada está perdendo uma oportunidade crucial de comunicar seus valores e aspirações. Seus sonhos. Seu futuro. Afinal os espaços públicos são manifestações materiais do nosso contrato social.

Precisamos pensar e repensar estes espaços através da lente do design atitudinal. Reconhecer o potencial transformador do design como força social e cultural. E principalmente, fazer o “efeito-peixe da entrada da cidade”: criar valor simbólico que mostre onde e porque estamos aqui. E qual a identidade que queremos levar para o mundo através das pessoas que passam por Santos.

Ou a gente acorda pra vida ou segue nessa ausência. Não dá mais pra fingir que tá tudo certo com essa lacuna de design, essa falta de identidade e essa desconexão total com a Santos que queremos ser. A história da rodoviária nos conta que já fomos corajosos no passado.

A gente merece mais. Santos merece mais. E quem chega aqui também.

Ludmilla Rossi
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