Texto porFlávia Saad
Santos (SP)

Catalisador eterno – os 100 anos de Vinícius de Moraes

É muito comum, em concertos da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, tocarmos Carinhoso, de Pixinguinha. E em algumas das ocasiões em que isso aconteceu, eu experimentei perguntar ao público: que outras músicas de Pixinguinha vocês conhecem? A resposta sempre foi a mesma: silêncio. Ninguém se lembra de mais nada do Sr. Alfredo da Rocha Viana Filho. Aliás, pouca gente sabe que esse é seu nome. Experimentei a mesma coisa com Chiquinha Gonzaga, Edu Lobo, e o resultado foi o mesmo. 

Creio que a situação é preocupante: estamos nos esquecendo de nossa música popular do passado recente. Da Bahia, uma colega voltou dizendo que muita gente lá nunca ouviu falar em Dorival Caymmi. Portanto, no momento em que me pedem um texto sobre os 100 anos de Vinícius de Moraes, talvez o melhor seja abrir mão de qualquer reflexão mais profunda sobre o Poetinha para apenas e simplesmente exercitar a memória – pois Vinícius fez muito, produziu muito e significou muito, e isso não pode ser esquecido!

Catalisador eterno - os 100 anos de Vinícius de Moraes

Vinícius, desde cedo, mostrou-se interessado pelas letras. Aos oito anos de idade, estudante de um colégio de padres, escrevia poemas e participava de montagens de pequenas peças de teatro. Aos 14, começava a compor suas primeiras canções, em parceria com Paulo Tapajós. Aos 20 anos, publicou seu primeiro livro.

Ganha prêmios, conhece Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, vai estudar línguas em Oxford, trabalha na BBC, volta ao Brasil, vem morar em São Paulo, onde se torna amigo de Mário e Oswald de Andrade. E…. ufa!…. já tem sete livros publicados. Está com apenas 30 anos de idade.

Parece mesmo que sua vida irá acontecer no mundo das letras. Mas aí, no início da maturidade, torna-se, paradoxalmente, mais irrequieto. Envolve-se com cinema. Vira jornalista. Faz longa viagem pelo Nordeste. Conhece arquitetos e artistas plásticos.

Torna-se amigo de João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Oscar Niemeyer, Pancetti, Djanira, Bruno Giorgi, Pedro Nava, Pablo Neruda. Está bom? Não. Entra no Ministério de Relações Exteriores (por concurso) e começa a conhecer o mundo: Los Angeles, Paris, Roma, México… Já tinha 41 anos de idade, e havia feito muita coisa.

Mas como dizem que a vida começa aos 40… decidiu escrever uma peça teatral, o que resultou em Orfeu da Conceição, uma adaptação do mito grego de Orfeu e Eurídice à realidade dos morros do Rio de Janeiro. A peça foi premiada no Concurso do IV Centenário de São Paulo. Dois anos mais tarde, procurava alguém para compor uma trilha sonora para a peça, quando um amigo, o crítico musical Lúcio Rangel, recomendou um jovem muito talentoso, um pianista de 29 anos, que ganhava a vida tocando em inferninhos de Copacabana. Seu nome: Antonio Carlos Jobim.

A partir daí, a história é mais conhecida.

Compuseram suas primeiras canções juntos. A peça, devidamente musicada, estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, virou disco, virou filme, ganhou a Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor filme estrangeiro. A história estava só começando.

Uma reação química tem determinada velocidade para acontecer. Uma pastilha efervescente de x miligramas jogada num copo com y mililitros de água vai demorar n segundos para se dissolver. Esse tempo será sempre o mesmo se repetirmos a operação. A não ser que nesta reação química se introduza um catalisador. O catalisador aumenta a velocidade da reação sem se consumir. No final, estará intacto.

Após o encontro com Tom, Vinícius tornou-se o maior catalisador da música popular brasileira. Participou de inúmeras efervescências, ligando-se a Baden Powell, com quem criou os Afro-Sambas; a Elizeth Cardoso e João Gilberto, no disco Canção do Amor Demais, pedra fundamental da Bossa Nova; foi parceiro de Carlos Lyra, Francis Hime, Chico Buarque, Ary Barroso, Pixinguinha…

Em 1965, a extinta TV Excelsior lançou o 1º Festival de Música Popular Brasileira. 1º prêmio: Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. 2º prêmio: Valsa do Amor Que Não Vem, de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Estava com 52 anos, e muita coisa ainda iria acontecer. Vinícius iria conhecer Toquinho, viajar pelo mundo divulgando a música popular do Brasil, iria cantar com a Orquestra Sinfônica do Estado de São, dirigida pelo maestro Diogo Pacheco e receber, ao final, 10 minutos de aplausos ininterruptos.

Em julho de 1980, terminou seu trabalho de catalisador aqui na Terra para, certamente, ir catalisar em outro lugar, pois o catalisador, como vimos, não se desintegra após a reação química.

No máximo, podemos nos esquecer dele. Mas aí a culpa será toda nossa!

*Por João Maurício Galindo, diretor artístico e regente titular da Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo

Se estivesse vivo, hoje, 19 de outubro, Vinícius de Moraes completaria 100 anos.