Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Setembro Amarelo, o racismo e a saúde mental do povo preto

O Setembro Amarelo, de se amar, de preservação da vida, de prevenção ao suicídio, está acabando. Quem dera, o desejo de matar o dor que o racismo provoca terminasse com ele.

O racismo rouba energia, destrói o sonho, faz a vida sucumbir, a alegria de viver sumir, cega o coração para as potencialidades, impede a real percepção de quem somos.

Oitocentas mil pessoas se matam por ano em todo planeta, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Mesmo quando o mundo assiste à diminuição da taxa de suicídio em cerca de 10%, no Brasil, ela aumenta 7%. 

No mundo, 69% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda, como onde vivemos.

No Brasil, todos os dias, 32 pessoas tiram a própria vida!

No mundo, o suicídio é a 2ª causa de morte entre adolescentes e jovens de 15 a 29 anos – e nós replicamos esta estatística na população negra.

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Detalhe: os dados são subestimados, desatualizados, por conta da vergonha, do preconceito, do tabu, em torno do assunto, e também da falta de assistência, da invisibilidade de parte da humanidade por parte dos poderes públicos e da sociedade. Sem contar a pandemia – marca do ano 2020.

Mesmo assim, para 2030, a expectativa é que se chegue a 2 milhões de suicídios!

As estatísticas, ano a ano, confirmam a trágica competência dos homens em tirar a própria vida e a ‘feliz’ incompetência das mulheres em realizá-los – é cerca de três vezes maior o número de suicídios entre os homens do que entre as mulheres.

Já as tentativas de suicídio são, em média, três vezes mais frequentes entre as mulheres.

A taxa global de suicídio padronizada é de 10,5 mortos por cada 100 mil pessoas e varia amplamente entre os países, indo de cinco a 30 mortes por cada 100 mil habitantes.

Em média, é uma morte a cada 40 segundos, uma tentativa a cada dois segundos.

Sempre alerta

Mas este é um espaço que propõe o pensar como a humanidade negra é tratada no mundo e o que se sabe, apesar das subnotificações, do olhar não empático para o povo preto, é que nós, originários da África e espalhados pelos quatro cantos do planeta, morremos mais também porque interrompemos o próprio existir.

Cena 1: Você está com pressa, andando rápido. Vê um policial e reduz o passo.

Cena 2: Você toma seu café da manhã, sai para trabalhar e, na esquina, alguém para você, colocando uma espingarda no seu rosto.

Cena 3: Tarde de sábado com os amigos e, de repente, gritam: “mão na cabeça”…

Não são cenas de filme policial. São cenas – só algumas – do cotidiano negro que nos obrigam a ‘estar em alerta’ permanentemente. A qualquer hora, podem passar a mão na sua bunda, no seu peito, xingar de “macaco”, de “neguinho”, apontar na sua direção como quem pegou a bolsa, a carteira, o suco ou, ainda,  confundirem seu filho com um ‘trombadinha’ ou simplesmente dizerem que você só está na universidade por causa das cotas…

Isso adoece, fragiliza, gera desgaste energético e psíquico de avôs, avós, pais, mães, filhos, filhas…

O militante, o ativista negro, fica craque em perceber mínimos gestos, palavras, olhares, atitudes racistas e isso, também, nos coloca em situação de estresse, como comenta a psicóloga Carla França, especializada em questões étnico-raciais pelo Instituto Amma Psiquê e Negritude.

Pesquisas indicam, mais e mais, que o suicídio é uma prática multifatorial, isto é, acontece por questões econômicas, sociais, biológicas e culturais. Mas “não enxergamos a raça como um determinante de saúde”, denuncia o psicólogo Paulo Navasconi, autor do livro “Vida, Adoecimento e Suicídio”, deixando no ar a pergunta: “Por que?” .

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Morte negra

A cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, do Ministério da Saúde, informa que, no Brasil, adolescentes e jovens negros entre 10 e 29 anos têm tirado a própria vida, envolvidos na engrenagem do racismo estrutural: situações de violência, que se somam à negligência na saúde, à negligência na assistência social, à desesperança, à falta de possibilidades, ao fim dos sonhos.

Os dados não são atuais, mas contam que entre 2012 e 2016 houve um aumento de 12% no risco de suicídio para jovens negros com até 29 anos, enquanto o índice dos jovens brancos se manteve estável. Em outras palavras, o risco de se perder a vida de um jovem negro pelo suicídio é 45% maior do que o de se perder a vida de um jovem branco.

“A juventude é quando a pessoa se percebe como indivíduo, como identidade. Vivemos em um país em que a maior parte da sociedade é negra, mas somos uma minoria quanto a oportunidades. O jovem negro vai aprendendo, pela forma como a sociedade lida com ele, que faz parte desse grupo de pessoas que é desvalorizado, acaba internalizando o racismo, percebendo-se como inferior e reproduzindo esse ódio a si mesmo” – avalia Rita Borret, coordenadora do estudo do Ministério da Saúde.

A cartilha levantou os casos de suicídio no Brasil a partir de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, cruzou com dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre o perfil racial do Brasil e a população por faixa etária, e chegou à taxa de suicídio – sem espaço para mimimi. 

“Os meninos pretos aparecem nos serviços públicos de saúde até uma certa idade. Depois reaparecem em situações de violência ou negligência, em abrigos, medidas socioeducativas…” – atesta a psicóloga Carla França, confirmando a invisibilidade da juventude preta na área da saúde.

Consequência naturalizada

Mas isso não é novidade, como afirma o psiquiatra Rodrigo de Almeida Ramos, apesar de o tema ser pouco explorado:

“Historicamente, os negros vivem uma situação de marginalização, o que dificulta sua inserção na sociedade…”. 

No mercado de trabalho, em situação de competição por vagas entre candidatos com o mesmo currículo, a probabilidade de o candidato branco ser aprovado é maior do que de um candidato negro; a população que se declara de cor preta foi a única que teve aumento na taxa de desemprego, em novembro de 2019, informa o IBGE, passando de 14,5% para 14,9%. Entre os brancos, a taxa caiu de 9,5% para 9,2% e, entre os pardos, caiu de 14% para 13,6%.

E quando a vaga é conquistada, o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, de 2018, do mesmo IBGE, informa que homens brancos estão no topo da pirâmide dos maiores rendimentos: para cada R$ 1.000 pagos a eles, são pagos R$ 758 para mulheres brancas, R$ 561 para homens pretos ou pardos e R$ 444 para mulheres pretas ou pardas.

No caixão

Na primeira década do século XXI, enquanto “o suicídio de pessoas brancas crescia 10%, em média, o de negros superava os 50%”, compara o psiquiatra Rodrigo de Almeida.  E entre os fatores de risco para o suicídio listam-se: além do desemprego, a sensação de vergonha, a desonra, as desilusões amorosas…

Muitos buscam, como “válvula de escape”, nas palavras do médico Rodrigo de Almeida, o alcoolismo e outras drogas. Só que quando percebem que  essa “válvula” não está funcionando, mais uma vez o racismo mostra as suas garras: apenas 26% dos negros dependentes de álcool e 22% de negros usuários de outros drogas têm acesso a tratamento, contra 44% dos brancos alcoolistas e 42% dos brancos dependentes químicos.

A maioria das pessoas em situação de rua, também, é formada por homens negros e esta população invisível aos nossos olhos e desassistida é grupo de risco –  por conta ainda, das pressões, das reprovações sociais e da vergonha, sempre a vergonha. Na rua, suicídio é uma das principais causas de morte. Mas quem faz a contagem das vidas que se esvaem nas calçadas das cidades? 

Fala e escuta

Não são poucas as entidades que se propõem ensinar a sociedade a lidar com o problema. Eu fiz um curso à distância chamado Prefiro Viver, da Federação Espírita Brasileira, e aprendi que “o suicídio é também uma última tentativa de se comunicar, um pedido de socorro que não chega a tempo”.

Tem muita gente sofrendo… E o medo de falar sobre pensamentos suicidas e ser julgado faz com que as pessoas se calem. Só que esses pensamentos de autoextermínio são mais comuns do que se imagina. E todos podemos ajudar: ouvindo, não julgando, dialogando, orientando, acolhendo amorosamente…

Suicídio não é questão de coragem ou covardia. O que move as pessoas na direção do suicídio não é a morte, mas o não suportar viver com sofrimento e dor.

Abaixo os tabus!

O Setembro Amarelo surge para que o suicídio deixe de ser tema tabu, como é tabu falar de racismo nas famílias negras.

Não se fala em suicídio porque, erroneamente, se acredita que o simples tocar no assunto estimularia o ato, por medo de contágio, de responsabilização, sensação de culpa, vergonha (sempre ela)… Por absoluta ignorância, a maioria de nós acredita que quem se mata o faz porque quer e não há como impedir isso.

“Só que não precisa ser assim. Falar é, sempre, a melhor solução” – nos ensina Flavia Bezerra Cruz, voluntária do Centro de Valorização da Vida (CVV), entidade que desde 1962 atua na preservação do viver, com serviço de escuta.

Suicídios são evitáveis”, garante o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom.

Como o racismo e a morte por racismo pode ser evitada. Mas não se fala de racismo em família, muito vezes nem com os amigos, na tentativa de fingir que não aconteceu, de impedir que aconteça de novo, para não entrar em contato com a própria dor, com o sentimento de humilhação, de menos valia, que provoca em suas vítimas.

Cusparada

O assistente social Felipe do Carmo, facilitador em rodas de conversa com homens autores de violência, no grupo reflexivo Flor de Cactus, durante a live Prevenção ao Suicídio, no fim de semana, comentou o caso de um homem que só na roda de conversa teve coragem de contar da “cuspurada” que levou no rosto, de uma  senhora, logo após ser “xingado de negro” – a classificação de xingamento tem a ver com o tom em que a palavra foi dita, e não com a expressão em si.

“Corpos negros são corpos que sofrem cusparada e a humilhação é tanta que eles se esforçam para esquecer, silenciando. E é assim que se dá a nossa luta diária por existir, para ter a humanidade garantida”, resume o assistente social.

A psicóloga Carla França acrescenta cores à realidade cotidiana do ser negro ao descrever a situação de um paciente que atende, um jovem preto, arquiteto, de 25 anos:

“Ele é bonito, inteligente, mas se vê de forma inferiorizada, não tem autoaceitação. Chegou no consultório dizendo que não tinha energia para fazer nada e que estava em isolamento antes da pandemia! Sempre viveu na periferia e entrou na faculdade, um ambiente embranquecido – teve todo um esforço para se colocar nesse lugar, sem sucesso. Ao mesmo tempo, na quebrada, dizem que ele ‘é o cara metido’ que fez arquitetura. Além disso, ele é gay em uma família evangélica. Não se sente pertencendo a nada, se percebe incompetente. Está apático, esvaziado de desejo, não consegue trabalho apesar de dois anos formado e quer, nas suas palavras, ‘dormir para sempre’. Estava tomando, escondido, remédios tarja preta de sua tia. Por sorte, a mãe percebeu”.

E está aí a questão do suicídio, sutil, numa história que se repete na vida de muitos negros que, de algum modo, conseguem furar a bolha da exclusão…

“A universidade não está preparada para nos receber… A maioria dos corpos da aula de anatomia são corpos negros, nossos irmãos, porque não são reclamados. Mas não tem nenhuma abordagem sobre isso, e quando fazemos ela é mal recebida”, denuncia Alanda Gomes que, quando a cartilha de óbitos foi divulgada, estudava Medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

“Essa estrutura provoca um adoecimento muito grande, e muitas vezes as pessoas não têm uma reflexão sobre isso. Eu fui vincular as coisas, quando entrei na faculdade” – confessa Alanda. “A população negra tem ascendido com o tempo, as pessoas têm um salário melhor e acessam outros lugares. Essa ascensão cria um choque, porque ninguém quer dividir poder. Tudo fica mais à flor da pele e o racismo institucional, que sempre existiu, fica muito vivo e aparece nas coisas mais simples. Às  vezes, respondo uma coisa para o professor e ele não valoriza. Quando uma pessoa de pele branca responde, ele valoriza. Em duas vezes que fui para congressos, fui revistada no aeroporto. As outras meninas que estavam comigo, não”.

Empatia zero

As estratégias para desumanizar o ser humano negro são de estarrecer. Eu, com 63 anos de vida negra, me surpreendo, ainda, com a capacidade de que pessoas consideradas ‘normais’ têm de minar a vida alheia.

Dia desses, assistindo o documentário Dentro de Minha Pele, de Val Gomes e Toni Venturi, ao ouvir de uma mulher negra, que trabalhava como doméstica, que sua patroa ‘secava no varal papéis higiênicos usados pela família para que fossem reutilizados por ela’, paralisei, o estômago embrulhou, faltou ar.

E mais estarrecida fiquei ao ouvir que a vítima de tamanha brutalidade aguentou esta e outras humilhações por quatro anos (!!!), calada – em nome da ‘empregabilidade’! Isso só parou quando alguém percebeu que ela estava morrendo em vida e a tirou desta situação.

A psicóloga Carla França lembra que, muitas vezes, o desejo de morte é inconsciente. Por isso, também, não devemos entender o suicídio só como sinônimo de  atitudes extremas:

Suicídio tem a ver com colocar a vida em risco. Um alcoolista coloca sua vida em risco. Pessoas que ficam sem comer colocam a vida em risco. Profissionais que trabalham na construção civil, bombeiros, funcionários de distribuidoras de energia, colocam sua vida em risco quando não usam equipamentos de proteção individual. Motoristas que invadem rodovias na contramão colocam suas vidas em risco…”

É o pedido de socorro, sutil.

E assim acontece o dia seguinte do escravismo que se perpetua, no silêncio, na dor, na morte lenta, homeopática, impensada.

Homem não chora

O pior é que a sociedade não educa os homens para sentir. Eles aprendem, desde pequenos, que homem que é homem não chora.

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E a mão pesa mais sobre o homem negro, afirma a psicóloga Laura Augusta Barbosa de Almeida:

“As masculinidades negras construídas nessa sociedade não dão aos homens negros o direito à humanidade. O corpo que serve ao trabalho, à reprodução não é considerado como de pessoa digna de afeto e com necessidades de cunho relacional. A forma como os homens negros são socializados impede que muitas vezes eles falem sobre o que sentem”. 

O começo de tudo? Na infância. Uma criança negra nasce mergulhada no racismo estrutural. O psiquiatra Rodrigo Ramos explica que “o racismo se instala muito cedo no cérebro das crianças”, antes ainda que se tenha cognição necessária para justificá-lo:

“Um estudo recente, nos EUA, pediu aos participantes que associassem um adjetivo a fotos com o rosto de pessoas pretas e pessoas brancas, resultou que os adjetivos positivos foram muito mais associados aos brancos do que aos pretos” -75% dos norte-americanos tinham uma “preferência inconsciente e automática pelos brancos”, constataram os pesquisadores.

Nós sabemos que aqui não é diferente – nem precisamos de pesquisas. E a nossa resposta, o nosso grito, a nossa ação é por reeducação para a prática de atitudes antirracistas, é por reparação histórica.