Texto porTania Regina Pinto
Jornalista, Santos (SP)

Ser criança preta no Brasil: um Dia das Crianças na raça

“Racismo e infância: Brasil falha em proteger crianças e jovens pretos”

“Dinâmica cruel formada por preconceito e exclusões afeta a saúde mental e mina a autoestima

Trabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil”

“A letalidade policial e a morte da Infância nas favelas cariocas

“Crianças negras morrem mais do que as brancas após cirurgias, indica estudo”

“Violência, racismo e desigualdade ‘adultizamcrianças negras no Brasil

Crianças negras são as maiores vítimas de estupro de vulnerável no Brasil”

Infâncias negras importam, por mais que as manchetes acima – facilmente encontradas em uma busca na Internet, usando as palavras-chaves “crianças negras” e “Brasil” – indiquem o contrário. E penso que temos de fazer alguma coisa nós, mães; nós, mulheres; nós, seres humanos.

Hoje, não vou apresentar números. As manchetes já fizeram o meu coração sangrar. Quero propor uma ação potente para educação dos nossos filhos e para nossa reeducação como pais, mães, como sociedade. Uma ação potente e divertida e transformadora e inclusiva.

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Reparação

Discriminação positiva, para mim, é justiça restaurativa, é reparação. E todo dia é dia para fazermos a diferença, assumindo atitudes antirracistas a nosso favor, e este nosso independe da cor da nossa pele. Como já escrevi várias vezes, nesta coluna, sem racismo, todos ganham.

Daí esta semana ter pensado em Vozes Pretas, na voz da minha criança, imaginando chegar na casa de uma amiguinha e encontrar bonecas de todas as cores; livros contando a história de príncipes encantados de cabelo black power, como O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França; desenhos animados com personagens como o Super Choque e jogos como Mancala, considerado o “pai dos jogos”, da África.

12 de outubro está chegando e não pode haver dia melhor para um marco na maneira de se estar na vida, presenteando todas as crianças com brinquedos e Brincadeiras Africadas – aliás, nome do livro elaborado pela educadora Débora Alfaia da Cunha, que pode garantir muita diversão educativa.

Invertendo os papéis

Passamos a vida, nós pessoas negras de todas as idades, recebendo presentes brancos na nossa infância: bonecas loirinhas, super-heróis de olhos azuis, jogos europeus, livros e vídeos de princesas da cor da neve e quando íamos na casa da vizinha, das primas, das coleguinhas de escola, encontrávamos mais do mesmo.

Infância também pede diversidade. E aqui na Baixada tem muita gente fazendo arte maravilhosa, inspirada no povo preto. Ano passado, comprei uma boneca de pano articulada da @upaneguinha, que – confesso – foi difícil entregar para a minha neta. Eu amo bonecas!

Animações como Kiriku, a lenda do guerreiro, superdotado, pode ser a pausa para o descanso de fim de tarde com direito a pipoca. Ele é um herói bebê que salva sua aldeia.

A cultura africana está na base da cultura brasileira, apesar do racismo em nossa sociedade se esforçar para se apropriar desta raiz nascida do outro lado do Atlântico.

Mas este Dia das Crianças é para ser diferente. É para celebrar e, ao mesmo tempo, gerar reflexões e investir na formação dos cidadãos do amanhã, uma nova e melhorada versão de cada um, cada uma de nós.

Emicida, Mandela, lagartos e mais

Vale, ainda, ao fim deste dia agitado, na hora de dormir, uma surpresa, um último presente antirracista. Que tal um livro? Tem muita coisa legal, que contempla os que nunca foram contemplados.

O rapper Emicida em Amoras, por exemplo, problematiza as relações étnico-raciais desfazendo ideias enraizadas, como a de pessoas negras em papéis de submissão ou escravizadas.

O Menino que Comia Lagartos, de Mercê Lopes, traz a história de um lagarto que perde sua cor, para discutir ancestralidade, a importância dos que vieram antes na construção da identidade e da autoestima.

Preta – em Histórias da Preta, de Heloísa Pires Lima – faz o caminho da África ao Brasil.

Em Ombela, A Origem das Chuvas, o escritor Ondjaki, usando uma lenda africana, apresenta os diversos sentimentos que cabem em uma pessoa, o que eles podem representar. E, ainda, leva o leitor mirim a perceber o seu lugar no mundo e o quanto pode contribuir para o universo.

Meu filho cresceu ouvindo a história da Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, sobre o coelhinho que queria ser pretinho também. E neste link ou no instagram @pretinhosleitores tem muitas outras indicações bem bacanas, que podem fazer toda a diferença nas brincadeiras nos playgrounds, praças, parques e praias no hoje.

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Poder negro

Uma última dica literária é a Coleção Black Power, com a biografias de cinco negros maravilhosos da vida real : Martin Luther King e Rosa Parks, símbolos da luta por direitos civis nos Estados Unidos; a escritora Carolina Maria de Jesus, mundialmente conhecida pelo livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, clássico da nossa literatura; Nelson Mandela e Barack Obama, primeiros presidentes negros da África do Sul e dos Estados Unidos, respectivamente.

Olhar inclusivo

É tempo de as crianças brancas crescerem sabendo que a cor da pele não nos diferencia como seres humanos, mas conta histórias de vida diferentes e que a diversidade é uma riqueza, é a possibilidade de ampliar o olhar.

Não vamos esperar que crianças se manifestem racistas. Podemos oferecer brinquedos, brincadeiras, livros e vídeos repletos de informação que nos iguala como Humanidade. Podemos estimular a curiosidade sadia ao diverso.

Presentear com olhar inclusivo é cuidar da educação de todos, é investir na afetividade, no respeito. É propor-se a conhecer o outro em sua plenitude.

Sem despesa

Pode ser que não falte dinheiro – ou falte. Pode ser que não haja tempo… Mas nada pode impedir que o novo normal aconteça se atitudes antirracistas já estiverem no norte, na disposição de mudança na maneira de se estar na vida.

Com embalagem de ovos e sementes de feijão pode ser construído o jogo Mancala.

Com qualquer pedaço de pano se faz a boneca abayomi, sem cola nem costura!

E tem, ainda, a possibilidade de download gratuito de contos africanos na internet, com costumes, modos de vida, relacionamento, tradições e fábulas diversas, como a de um macaquinho que foi o primeiro ser vivo a chegar na lua.

Todo dia é dia

Todo dia deve ser dia de todas as crianças, de fazer valer seus direitos à educação, moradia, saúde, alimentação, amor. Elas são a nossa responsabilidade. Mas nós somos prósperos em datas e não em exatamente fazer cumprir a lei.

No Brasil, existem, pelo menos, duas datas que celebram a infância.

Uma é o 27 de Setembro, das religiões de matriz africana, o dia dos orixás Ibejis, filhos gêmeos de Xangô e Iansã – os irmãos Cosme e Damião, celebrados um dia antes pelos católicos, em 1º de novembro na Igreja Ortodoxa e em 1º de julho pelos ortodoxos gregos. Como eles são considerados protetores das crianças, se criou o costume de distribuir os doces para homenageá-los ou se cumprir promessas.

A outra data é o 12 de Outubro, que também é dia da santa católica pretinha, Aparecida – a orixá Oxum, do candomblé -, uma ideia do deputado federal Galdino do Valle Filho, oficializada como data oficial para comemoração do Dia da Criança pelo presidente Arthur Bernardes, por meio do decreto nº 4867, de 5 de novembro de 1924.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF convencionou o dia 20 de Novembro para se comemorar o Dia das Crianças. Isso porque, neste dia, em 1959, se oficializou a Declaração dos Direitos da Criança.

Mas o Brasil bateu o martelo no 12 de outubro e começou a celebrá-lo pra valer a partir de uma campanha de marketing de uma indústria de brinquedos chamada Estrela.

Os direitos e a vida real

Os direitos humanos são universais, isto é, todos os  seres humanos que vivem no planeta direito nascem com esses direitos, e ninguém pode tirá-los.

Em tese, os direitos humanos valem igualmente para todas as crianças, não obstante existirem alguns direitos adicionais que respondem às suas necessidades específicas de proteção e desenvolvimento. Mas que não se pense que esses direitos são importantes porque as crianças são o futuro. Esses direitos são fundamentais porque as crianças são seres humanos.

E eu repito as manchetes:

“Racismo e infância: Brasil falha em proteger crianças e jovens pretos. Dinâmica cruel formada por preconceito e exclusões afeta a saúde mental e mina a autoestima”

Trabalho infantil negro é maior até hoje por herança da escravidão no Brasil”

“A letalidade policial e a morte da Infância nas favelas cariocas”

“Crianças negras morrem mais do que as brancas após cirurgias, indica estudo”

“Violência, racismo e desigualdade ‘adultizam‘ crianças negras no Brasil”

“Crianças negras são as maiores vítimas de estupro de vulnerável no Brasil”

Infâncias negras importam

E vale salientar dois princípios da Declaração dos Direitos da Criança:

Princípio 8 – “A criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os primeiros a receber proteção e socorro.”

Princípio 10 – “A criança gozará de proteção contra atos que possam suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de seus semelhantes.”

Façamos, minimamente, a nossa parte.